Sob o título "Hipócritas. Mil vezes hipócritas!", o artigo a seguir é  de autoria do juiz Milton Biagioni Furquim, de Minas Gerais. O texto  trata da indignação diante do assassinato da juíza Patrícia Acioli e da  insatisfação dos magistrados com as condições para o exercício da  função. 
Hipócritas,  mil vezes hipócritas! Precisa que uma juíza seja covarde e barbaramente  assassinada para que a sociedade, governo, juristas, imprensa,  políticos, Desembargadores, Ministros, Corregedora do CNJ, Presidente do  STF, padeiros, açougueiros, etc. fiquem consternados (será?) e lamentem  o episódio.
Ora, pois! Até agora só ‘metiam o pau’ nos juízes,  críticas de toda ordem carregadas dos piores adjetivos referindo-se aos  salários de ‘marajás’, quando se sabe que os promotores ganham mais que  os juízes, sem falar nos que insistem para que os juízes sejam  equiparados e tratados como meros servidores públicos.
Se não  bastassem as críticas acerbas e injustas, ainda temos o CNJ  aterrorizando juízes e fazendo cobranças de toda ordem de modo a nos  deixar sem tempo para judicar, para podermos sentenciar com qualidade.  De quebra ainda temos que reverenciar Presidentes dos Tribunais de  Justiças que nada fazem pela classe e só estão preocupados em melhorar  seus currículos fazendo o papel de idiotas e bobos da corte se  humilhando e curvando perante os outros poderes.
Que moral o  presidente do STF e a Corregedora do CNJ têm prá falar em nome dos  Juízes? Será que um dia na vida estiveram juízes como nós mortais? Oras  bolas, se estão Ministros se devem a três fatores: boa relação com o  governo, falar bonito e escrever bem. Deveriam, ao menos um só dia, ter  estado juiz mortal como nós e ter dado a ‘cara’ prá bater como nós damos  a toda hora. Deveriam ter tido a oportunidade de, na pequena comuna,  anular uma eleição, cassar o prefeito, prender polícia, olhar na ‘cara’  do jurisdicionado 24 horas por dia como fazemos. Deveriam, por justiça,  sofrer ameaça de toda ordem como nós sofremos, a exemplo da colega  assassinada. Na lista dos jurados para morrer tem Desembargador e  Ministro? É evidente que não. Por certo é diferente do que ficar em seus  suntuosos gabinetes e distante do cidadão carente e ávido pela rápida  prestação jurisdicional, e do juiz que teve a coragem de enfrentar a  bandidagem.
Ninguém mais do que eles - Desembargadores,  Ministros, os Conselheiros fabricados do CNJ, a nos expor perante a  sociedade como somos expostos de forma a atrair a ira do cidadão  incauto, dos fabricadores de opinião contra a Magistratura. Hoje a  sociedade perdeu de vez o respeito que outrora os juízes detinham. Somos  vistos com reservas e desconfiança. Como uma classe de privilegiados em  detrimento da pobreza do povo.
Os deuses dos Tribunais só sabem cobrar, mas é fácil cobrar quando um dia sequer vivenciaram o dia a dia dos juízes mortais.
 É  fácil cobrar quando não se está na pele da juíza assassinada.  Consternação, indignação, exigir uma rápida investigação, mandar coroa  de flores aos familiares da juíza é o ‘prêmio’ que ela ganhou por  enfrentar a bandidagem. Você viu um presidente do TJ e um Ministro ser  ameaçado de morte? Como pode um Ministro se colocar na pele de um juiz  mortal se nunca teve a oportunidade de enfrentar com a 'cara' e a  coragem todo tipo de pressão e ameaça?
Concordo em gênero, número  e grau com os que propalam e defendem, em especial a imprensa, o  Senador Suplicy e tantos outros desavisados e maldosos, a tese de que  nós juízes devemos ser tratados como meros servidores públicos, sem  qualquer diferenciação. Quero uma audiência com o Senador para  hipotecar-lhe o meu apoio para acabar com as férias dos juízes e  dispensar a nós juízes o mesmo status e regime dos servidores públicos.
Concordo  porque se assim formos reconhecidos e tratados, então devemos começar o  nosso trabalho às 8 horas da manhã, com uma hora de almoço, e terminar o  expediente às 17 horas, exatamente como fazem os gloriosos e abnegados  servidores públicos. 
Assim, nesse ínterim faremos  tão somente o que os servidores públicos fazem e nada mais. Durante o  expediente devemos tão só realizar as audiências, no máximo duas,  despachar e sentenciar processos e cuidar da parte administrativa e,  pronto. Assim seremos verdadeiros servidores públicos sem qualquer  diferenciação. Justiça feita. Nada de levar processos prá casa; nada de  tirar férias para dar ‘cabo’ nos processos. Os servidores públicos não  levam os serviços para a casa, e assim como todo servidor público  poderemos nos dedicar às boas coisas da vida, como por exemplo, dar mais  atenção aos familiares, cuidar melhor da saúde, dedicar ao lazer, jogar  conversa fora com os amigos no final da tarde, nos finais de semanas e  feriados.
E a prestação jurisdicional como ficará então? Oras  bolas, como diria o bom e produtivo servidor público, que se dane o  cidadão, a imprensa, o Senador. Que esperem e aguardem o momento  oportuno de ser analisado o seu pleito. Se vai levar tempo para dar uma  resposta ao pleito do cidadão – uma liminar, uma revogação da prisão  preventiva, uma tutela antecipada e tantas outras medidas de caráter  urgente, o problema não será nosso (juízes, agora servidores públicos),  mas sim do próprio cidadão, da imprensa e do Senador que insiste em nos  ver e tratar como um servidor qualquer.
Hipócritas, mil vezes  hipócritas! Negam-nos um salário condigno com a atividade que exercemos,  com a monstruosa carga de serviços e de responsabilidades; negam-nos  direitos adquiridos que temos; negam-nos segurança; negam-nos a  dignidade e o respeito e, então, como querer que o cidadão nos respeite?  Aprovam leis sem saber o que estão aprovando dando salvo conduto a  bandidagem e ainda querem que os juízes façam milagres? Roubam  descaradamente o povo e não admitem uma simples investigação. ‘Uai,  pobre de nóis sô’, como dizia minha recém falecida mãe.
Uma  simples 'denúncia' inconsequente e lá estamos nós perante a CGJ e o CNJ  nos contorcendo para safar-se e olha que não é fácil. Que  constrangimento. 
Tamanha hipocrisia nunca vi. Eu  aconselhei um sobrinho que queria ser padre para que deixasse dessa  bobagem porque jamais ele iria chegar a ser papa e, às vésperas de  ordenar padre abandonou e hoje faz medicina, mostrou ser um menino  inteligente, então eu sempre aconselho meus amigos e estudantes de  direito para esquecerem a idéia de querer prestar concurso prá  magistratura, e tentem o Ministério Público, ou então a ser  Desembargador pelo quinto, ou então Ministro do STJ, STF, ou o melhor de  todos, aventurar-se pela política, caso contrário vá plantar abobrinha,  criar galinhas.
Hoje não se vê um só juiz que esteja satisfeito  com a instituição, com o tratamento que nos é dispensado. Pior, todos,  mas sem exceção, estão desmotivados, frustrados, acabrunhados. É certo  que ser juiz é um projeto de vida, mas vale a pena hoje bancar esse  projeto de vida? Vale a pena você ter que ver os Presidentes dos TJs  mendigar e se humilhar perante os dois outros poderes que vivem envoltos  com a corrupção para que alguma migalha nos seja dada a fim de melhorar  nossos vencimentos, ou então nos pagar o que temos por direito, ou  melhorar nossas condições de trabalho e segurança?
Hipócritas. A  colega assassinada se tornou mártir ao ser covardemente assassinada.  Então pergunto: e nós que ainda estamos vivos nos tornamos o quê? Por  certo o vilão dessa história toda por estarmos vivos. Quem sabe, aos  olhos da repórter que ironicamente nos criticou, da imprensa, do  deputado, do Senador, do açougueiro, do padeiro, do CNJ e dos Ministros,  somos corruptos, marajás, vagabundos, servidores públicos  privilegiados, enganadores e outros adjetivos desqualificados.  Mil  vezes hipócritas!
É muito incômodo e revoltante para os  magistrados sérios e competentes que se dedicam á causa da Justiça ter  que conviver com tamanho desrespeito e com críticas maldosas. Já foi  dito que os juízes não têm armas ao contrário dos outros poderes. Não  têm o poder econômico e não têm o costume de ir à mídia. Acrescento que  não sabem lidar com a mídia porque não sabem ser demagogos e não  conseguem enganar o povo. O Judiciário, entenda, os juízes da inferior  instância, é o mais fraco dos poderes e por isso tem que ser resguardado  e cuidado com carinho, porque ainda que hajam algumas mazelas, mas  ainda é a última trincheira e esperança do padeiro, do açougueiro, do  frentista, do repórter. Por certo não é a última esperança do Senador,  do Deputado e outros, pois legislam em causa própria.
Precisa o  cidadão conscientizar de que se não mais poder recorrer e confiar no  juiz de primeira instância, não terá ninguém mais quem lhes atenda e aí,  com certeza a sociedade não dormirá tranqüila, porque magistrado  medroso não é magistrado é arremedo de juiz.  E por certo a colega  assassinada viveu em toda plenitude a grandeza de ser juíza, ao  contrário dos nossos Ministros.
Espero, enquanto um mortal juiz,  ter o direito de externar minha revolta com esse estado de coisas sem a  ameça de ser punido, não pela bandidagem, mas pela minha Instituição.
 
Hipócritas, mil vezes hipócritas!
 
Tarde, li no jornal sobre esse assassinato. Ela tinha quarenta e poucos anos ainda, filhos, ética, coragem, vida. E acabou assim: desamparada e alvejada. Esse país está tão complicado. Dá um desânimo tão grande, tão grande...
ResponderExcluirbeijo.
BF