Primeiro vieram as dúvidas, trêmulas lamparinas a iluminar o rosto da Verdade. A Dúvida é um vento que levanta os finos véus através dos quais enxergamos a existência. Prece libertadora bradada aos quatro cantos do mundo: “Que a Dúvida possa me levar aos inúmeros caminhos que ainda não percorri, até que descubra, enfim, que toda a vida é apenas ilusão”.
E, assim, intensificou-se o vento, derrubando crenças e credos, deixando à mostra verdades que nunca me ensinaram e que contradiziam os ensinamentos de todos os mestres eventuais ao longo do caminho.
Epifanias. Coisas que nunca me disseram incendiaram minha mente com o seu clarão, e eu era então portadora do fogo divino. Como mulher, sabia-me agora guardiã de segredos ocultos, seculares. Vestida no corpo de plácidas anciãs, aprendi a ser guia, a fazer cessar a chuva, abrir caminhos entre as nuvens, a abdicar da condição de costela e a fazer-me inteira, nascida de mim mesma.
Depois veio a noite e o sonho. Uma grande serpente fixou seus olhos rasgados nos meus. Quem era ela e o que queria de mim, eu ainda não sabia. Diminuta, diante dela, esperei. Nada me disse e eu era puro assombro paralisado.
Não era a primeira vez que ela viera. No primeiro sonho, anos atrás, ela tomava, inteira, a cabana coberta de palha onde eu dormia. Assustou-me por ser tão infinitamente maior que eu. Daquela vez deixou silêncio, mudez, fagulhas de luz que reaçalvam as trevas, sem, no entanto desvendá-la.
Agora era diferente. Eu já me dera conta da cauda que eu escondia sob o delicado vestido azul. Eu já conhecia minhas retinas ardendo na escuridão da madrugada. Decifrava os augúrios dos bichos. Meu pranto abafado pelo travesseiro era uivo.
Fiz longo caminho para reencontrá-la. Andei para trás. Troquei o olfato pelo faro. Defrontei-me com minha pele escamosa e arrisquei a poesia sibilante. Sabia que o meu veneno era também antídoto.
A serpente mostrou-se a mim como o velho Deus primário encontrado na origem de todas as cosmogêneses, antes que as religiões do espírito a destronassem. Sua mensagem é revitalizadora: já não necessito da moral simplificadora do Bem e do Mal, que reprime no inconsciente as aspirações e inspirações mais profundas do ser. O velho Deus primário mostrou-me sua face. Agora posso entregar-me à Noite sem medo.
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Olá...
ResponderExcluirEntão "toda a vida é apenas uma ilusão?"
A serpente, o assombro ¨¨mudez ; e no fim " Agroa posso entregar-me à noite "sem medo...(?
Muito profundo O Sonho.
Gostei imensamente.
bjinho
Grta pela leitura, Mery! Beijos
ExcluirTexto bem escrito, Tania. Um abraço. Tenhas um lindo dia.
ResponderExcluirObrigada pela delicadeza do olhar, Dilmar.
ResponderExcluirUma boa noite pra você...
O rosto da verdade, às vezes, é muito diferente do retratado nas fotos...
ResponderExcluirUm texto que é um clarão esse.
Beijo
Os sonhos germinam na escuridão, mas trazem o clarão. Grata pela leitura, Lelena.
ResponderExcluirBeijos,