quarta-feira, 20 de junho de 2012

Helenamente


Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
A maneira mais triste de se estar contente
a de estar mais sozinho em meio de mais gente
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente
Emotiva atitude de quem age friamente
inalterável forma de se ser sempre diferente
maneira mais complexa de viver mais simplesmente
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto mais se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente
O modo mais saudável de se estar doente
de se ser verdadeiro e revelar-se que se mente
de mentir muito verdadeiramente
de dizer a verdade falsamente
de se mostrar profundo superficialmente
de ser-se o mais real sendo aparente
de menos agredir mais agressivamente
de ser-se singular se mais corrente
e mais contraditório quanto mais coerente
A via enviesada para ir-se em frente
a treda actuação de quem actua lealmente
e é tão impassível como comovente
O modo mais precário de ser mais permanente
de tentar tanto mais quanto menos se tente
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente
de estar mais no passado se mais no presente
de não se ter ninguém e ter em cada homem um parente
de ser tão insensível como quem mais sente
de melhor se curvar se altivamente
de perder a cabeça mas serenamente
de tudo perdoar e todos justiçar dente por dente
de tanto desistir e de ser tão constante
de articular melhor sendo menos fluente
e fazer maior mal quando se está mais inocente
É sob aspecto frágil revelar-se resistente
é para interessar-se ser indiferente
Quando helena recusa é que consente
se tão pouco perdoa é por ser indulgente
baixa os olhos se quer ser insolente
Ninguém é tão inconscientemente consciente
tão inconsequentemente consequente
Se em tantos dons abunda é por ser indigente
e só convence assim por não ser muito convincente
e melhor fundamenta o mais insubsistente
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente

Ruy Belo
Transporte no Tempo
Editorial Presença
1997
4 ª edição

3 comentários:

  1. Belíssimo!

    Embora quase humanamente impossível caber uma vida dentro de tantos paradoxos.

    Beijos, Lelena!

    Parabéns pela escolha do texto;

    Mirze

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  2. Tanto foi dito, e sempre as rimas repetidas, não é pra qualquer um. Principalmente porque ficou bonito e fácil de ler.

    Beijins, Lelena.

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  3. Dicção maravilhosa. Rui Belo se inscreve entre os melhores de
    uma nova geração (já não é tão nova, eu sei, pois a primeira edição de Transporte do Tempo é de 1973, salvo engano), da literatura portuguesa, junto a Eugenio de Andrade, Herberto Helder, Antonio Ramos Rosa, Casimiro de Brito e outros. A escolha do poema é felicissima.
    bjss,
    José Carlos

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