A cama é moderna.
O prédio é antigo, mais velho do que a cama. Estou só e o quarto não roda. A dor recomeça e não tenho vontade de pedir ajuda. A dor estará aqui, outra vez, quando o dia amanhecer e eu sair para comprar os pães quentes. Me vejo outra vez na hora do parto. A dor enlouquece mas não vai partir antes
que chegue o corpo novo, todo meu, sangrando, cheio de escaras, enrolada por um umbigo gigantesco, sufocado por tecidos velhos, um corpo novo, antes, todo meu, guardado, faltando um olho e esparadrapo ocupando a escuridão que vem do vidro, olho quebrado. Eu grito agora, em câmara lenta, e grito há anos, um parto assim, quadriculado, repartido em seus disfarces de delírio, paixão e gozo, ódio e vingança, palco estrelado. Hora do parto, neste quarto, a cama é moderna, o homem que faz silêncio de mil facas me mata, se contrai, grita, goza na vagina da outra, no outro universo enquanto ela diz seu nome, de macho, eu ouço meu amor lembrar de mim no seu silêncio, e grito a morte, minha arma, nesta hora do parto.
[Publicado originalmente na minha Casa de Inverno:
Eliana,
ResponderExcluirVc quadriculou vida e morte, dor e gozo [há quem os veja juntos], sexo como arma, grito como arma, ódios e vinganças, num curta que merece/pede a câmera lenta, para que se apreciem essas tais nuances. A cama tem de ser mais moderna do que o prédio: é uma necessidade estrutural. Do contrário, estaria quebrada no esforço de sustentar tão quadriculada vida.
Texto extremamente imagético, muitíssimo imagético, sendo a sucessão de imagens impregnadas pelo estilhaçamento do olhar. Sim: os estilhaços veem do olho lírico que, temporariamente, acha alguma voz, antes de gritar a morte. Na hora do parto, of córça.
Um beijo, Eliana. Texto muito interessante e ilustrativo do seu estilo, tom, "digital poético-narrativa".
tão intenso, Eliana.
ResponderExcluirfiquei perturbada.
beijosss