sábado, 30 de junho de 2012
Corvo
Corvo danado.
Passa horas no meu céu.
Faz sombra sobre o meu corpo.
Trata-me como uma presa.
Confunde meu sono com fragilidade.
Mal resiste à tentação do ataque.
Não me bica por uma questão de princípios.
Corvo com princípios.
Corvo fascinado pela minha pele de dunas, pelos laços que me encobrem.
Corvo tonto.
Corvo astuto.
Passa horas no meu céu.
sexta-feira, 29 de junho de 2012
Allegro
Allegro
Acho que foi a propósito de ternura que outro dia, aqui, eu falei da nossa vaquinha.
Como, você há de me perguntar, é possível ter uma vaquinha em um minúsculo apartamento?
Saiba, então. Em poucas palavras.
Ela veio de V-a-c-a-r-i-a.
Não é minha, é da família. Mas ela tem uma mãe. É bom dizê-lo.
É bom dizê-lo também que é uma vaca estimadíssima. Pessoa, em primeiro grau.
Ah! Não me perguntem o que é isso por que eu não sei explicar. Só a mãe dela o faria bem. Isto, se o fizesse verdadeiramente e, claro, se, por sua vez, você acreditasse na versão que nos ilude.
A propósito, aprendi a pronunciar a palavra V-a-c-a-r-i-a assim, como a bípede falante o faz quando, às vezes, se refere também à sua cidade natal.
Mesmo quando ela escreve V-a-c-a-r-i-a parece que a ouvimos com o seu sotaque.
É assim que ela o diz, repito.
V-a-c-a-r-i-a!
Pois. A Marie Joséphine, que é nome de batismo da vaquinha, é francesa.
É estranho, pasmem, mas ela veio de Saint Tropez. É, já se vê, uma vaquinha très chic.
Mas nascemos, sem exceção, de uma forma ou de outra, para correr o mundo.
Marie não seria diferente.
E, pelas mãos do destino, ela vai parar em V-a-c-a-r-i-a primeiro e, não sabemos como, depois, nos braços da mãe soteropolitana. Aqui, do outro lado dos trópicos, jungida a todos nós pelo tempo da alegria e da afeição.
E da bagunça também na casa quarto.
Uma adoção pura e simples, feita pela avó. Mas não insistam em saber se ela veio mesmo da França, nunca o saberemos.
Se a avó a trouxe da sofisticada praia francesa, lá onde Brigitte se imortalizou no cinema, para V-a-c-a-r-i-a. Ou se fez a adoção por lá, trazendo-a batizada, nunca saberemos, pois a mãe, embora não queira nos confundir, desdiz tudo a tudo hora.
Faz parte do inconsciente em que mergulhamos na hora da criação artística.
Também pode parecer esquisito, mas ela é um presente de formatura.
Uma segunda licenciatura da moça a fez cair em seus braços, assumindo a maternidade.
É da moça ou da menina? Pai nunca sabe quando ainda é menina ou quando já é moça, embora sempre saiba quando a terra tem sede.
Quando ela chegou foi bem recebida em nosso porto e, no palco, que a mãe armou imediatamente para a vaquinha.
Um hausto azulado.
Mas a banqueta é vermelha. Nela, sentada, o dia inteiro exerce o seu reinado.
Está sempre na cadeira do comando. Nasceu para bailar, nasceu para mandar!
“Pronto falei!”. Não nos cansamos de ouvir o seu bordão preferido, embora às vezes incomode.
Ah! Também é bom saber que a vaquinha já fez três aninhos.
No dia em que ficou mais velha na casa pela última vez, ela tomou o seu primeiro banho.
Bateu uma depressão na mãe quando ela foi para a banheira, pois ela ficou com medo que Marie Joséphine se desfizesse na máquina de banho, que ficava logo na esquina.
Uma máquina moderna, segura, todos sabiam, mas poderia fazê-la despedaçar-se, transformando-a em penugem, fazê-la perder a esfericidade.
Porque ela não é gorda, ela é esférica. Também já nos cansamos ouvi-la dizer isso. E enfaticamente.
E a mãe passava pela máquina de banho todos os dias para observar se Marie já tinha se banhado e se ainda estava inteirinha, como a deixou.
Até o dia aprazado. Quando ela voltou limpinha, alvíssima e perfumada, com água de cheiro da lavanderia.
De qualquer modo, uma parte da biografia está obscurecida, por isso jamais será escrita para os pósteros da família.
Não sei se fazia isso por lá, pelas bandas de Saint Tropez, mas o que Marie mais gosta é de soltar o verbo.
Aqui se diz que fala pelos cotovelos.
Está sempre observando, como ela própria diz, para depois imiscuir-se sem cerimônia, diga-lhe respeito o assunto, ou não.
Pode dizer-se que, às vezes, ela é uma vaquinha enxerida.
Engraçado na sua biografia é a relação que mantém com a sogrão, a caneca do avô para o café da manhã.
Abro um parêntese. A sogrão nasceu sob o signo da polêmica. Um presente do genro. Este a levou desembrulhada. E como foi difícil explicar, no restaurante, à vista de todos da família, o porquê disso. Foi a maior saía justa! Depois conto o resto. Fecha.
Desde o início da manhã, há uma briga de foice, são modos de dizer, pois não há brigas, apenas um jogo. Um a dizer uma coisa e o outro a dizer outra.
E se comprazem nesse jogo infantil. Entre outras coisas.
Marie diz que não lava a sogrão e o avô diz que já faz o trabalho sujo, que é arrumar a cozinha. E neste perrengue, tomam o café juntos.
Mas ao fim ao cabo, a sogrão acaba lavada e a cozinha arrumada. Quem gosta é a abuelita que, ao chegar para o seu café, já a encontra transparente, luzindo.
Como ela gosta.
“E todo mundo sabe que o lugar da casa que a abuelita mais gosta é a cozinha. Pronto falei!”
Do blog Tão Preto - Ausente de si mesmo , de José Carlos Sant Anna
quinta-feira, 28 de junho de 2012
Eu nunca te alcanço
De que serviu ir correr mundo, arrastar, de cidade em cidade, um amor que pesava mais do que mil malas; mostrar a mil homens o teu nome escrito em mil alfabetos e uma estampa do teu rosto que eu julgava feliz?
De que me serviu recusar esses mil homens, e os outros mil que fizeram de tudo para eu parar, mil vezes me penteando as pregas do vestido ... cansado de viagens, ou dizendo o seu nome tão bonito em mil línguas que eu nunca entenderia?
Porque era apenas atrás de ti que eu corria o mundo, era com a tua voz nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo do amor de cidade em cidade, o teu nome nos meus lábios de cidade em cidade, o teu rosto nos meus olhos durante toda a viagem,
mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.
(Maria do Rosário Pedreira)
quarta-feira, 27 de junho de 2012
Reflexos
Amy Hildebrand
Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite
E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:
o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,
invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.
Ana Luísa Amaral
In Anos 90 e Agora
Quasi Edições
Olho-te pelo reflexo
Do vidro
E o coração da noite
E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:
o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,
invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.
Ana Luísa Amaral
In Anos 90 e Agora
Quasi Edições
terça-feira, 26 de junho de 2012
De amor
Henri Matisse. Polinésia.
Falem de um
amor recente
ou dos de outrora,
antigos que foram novos.
Qualquer poema de amor
é sempre agora.
ou dos de outrora,
antigos que foram novos.
Qualquer poema de amor
é sempre agora.
segunda-feira, 25 de junho de 2012
Onde não há sono
Agruras e abismos são altura rasa
de rosas abissais, onde não há sono
nem um pomo amadurece os sumos
nem aves bicoram o húmus
sombra de sedimentos informes
sem amálgama que dê sentido
identifique tema conhecido
modele forma real.
Passagem de curto estar
desvinda de abrigo
em frio de ser só no mais fundo:
Agruras se passam por não se poder
deixar de passar.
Alba Liberato, poeta e roteirista - Nazaré (BA)
sábado, 23 de junho de 2012
Romance de Dom Boyso
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Federico Garcia Lorca
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Caminha Dom Boyso
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . manhãzinha fria
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a terra de muros
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a buscar amiga.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Achou-a lavando
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . numa noite fria.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . — Que fazes aí, moura,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . filha de judia?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . deixa meu cavalo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . beber água fria.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . — Rebente o cavalo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . e quem o trazia,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . que moura não sou, filha de judia.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sou cristã
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . que aqui estou cativa.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . —Se fosses cristã
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . eu te levaria
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . e em panos de seda
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . te envolveria;
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . porém se és moura
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . eu te deixaria.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . manhãzinha fria
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a terra de muros
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a buscar amiga.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Achou-a lavando
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . numa noite fria.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . — Que fazes aí, moura,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . filha de judia?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . deixa meu cavalo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . beber água fria.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . — Rebente o cavalo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . e quem o trazia,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . que moura não sou, filha de judia.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sou cristã
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . que aqui estou cativa.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . —Se fosses cristã
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . eu te levaria
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . e em panos de seda
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . te envolveria;
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . porém se és moura
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . eu te deixaria.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Montou-a ao cavalo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a ver que dizia;
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . mas nas sete léguas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ela silencia.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ao passar num campo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . de verdes olivas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . por aqueles prados
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . que prantos vertia!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ai, prados! Ai, prados!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ai, da minha vida.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quando o rei meu pai
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . plantou esta oliva,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . plantou-a ele aqui
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . mas eu a mantinha,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . enquanto a rainha
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a seda torcia,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . meu irmão Dom Boyso
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . os touros corria
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . —E como te chamas?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . —Eu sou Rosalinda,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . e assim me chamaram
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . porque ao nascer
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . uma linda rosa
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . em meu peito eu tinha.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . —Você, pelas senhas,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . minha irmã seria.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Abra minha mãe
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . portas de alegria,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . se não trouxe nora,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . trouxe sua filha.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a ver que dizia;
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . mas nas sete léguas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ela silencia.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ao passar num campo
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . de verdes olivas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . por aqueles prados
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . que prantos vertia!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ai, prados! Ai, prados!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ai, da minha vida.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quando o rei meu pai
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . plantou esta oliva,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . plantou-a ele aqui
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . mas eu a mantinha,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . enquanto a rainha
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a seda torcia,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . meu irmão Dom Boyso
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . os touros corria
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . —E como te chamas?
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . —Eu sou Rosalinda,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . e assim me chamaram
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . porque ao nascer
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . uma linda rosa
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . em meu peito eu tinha.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . —Você, pelas senhas,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . minha irmã seria.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Abra minha mãe
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . portas de alegria,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . se não trouxe nora,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . trouxe sua filha.
sexta-feira, 22 de junho de 2012
Do arame
comprei um vestido de chita
vestí o esqueleto e ordenei-o:
dança!
comprei um par de sandálias
coloquei-lhe saltos e lhe disse:
pula!
do arame saltaram pulgas
colaram-se-me na pele
cachoeiras quedaram-se
mar mares muitos mas
não hei de navegar-te
joga-me aos ventos lança-me
ao infinito
mar amar amaro
verdes cactos verdes versos
verão outono infernos
o vestido era de chita
o esqueleto se quebrou
Mar amarelô
quarta-feira, 20 de junho de 2012
Helenamente
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
A maneira mais triste de se estar contente
a de estar mais sozinho em meio de mais gente
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente
Emotiva atitude de quem age friamente
inalterável forma de se ser sempre diferente
maneira mais complexa de viver mais simplesmente
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto mais se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente
O modo mais saudável de se estar doente
de se ser verdadeiro e revelar-se que se mente
de mentir muito verdadeiramente
de dizer a verdade falsamente
de se mostrar profundo superficialmente
de ser-se o mais real sendo aparente
de menos agredir mais agressivamente
de ser-se singular se mais corrente
e mais contraditório quanto mais coerente
A via enviesada para ir-se em frente
a treda actuação de quem actua lealmente
e é tão impassível como comovente
O modo mais precário de ser mais permanente
de tentar tanto mais quanto menos se tente
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente
de estar mais no passado se mais no presente
de não se ter ninguém e ter em cada homem um parente
de ser tão insensível como quem mais sente
de melhor se curvar se altivamente
de perder a cabeça mas serenamente
de tudo perdoar e todos justiçar dente por dente
de tanto desistir e de ser tão constante
de articular melhor sendo menos fluente
e fazer maior mal quando se está mais inocente
É sob aspecto frágil revelar-se resistente
é para interessar-se ser indiferente
Quando helena recusa é que consente
se tão pouco perdoa é por ser indulgente
baixa os olhos se quer ser insolente
Ninguém é tão inconscientemente consciente
tão inconsequentemente consequente
Se em tantos dons abunda é por ser indigente
e só convence assim por não ser muito convincente
e melhor fundamenta o mais insubsistente
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente
A maneira mais triste de se estar contente
a de estar mais sozinho em meio de mais gente
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente
Emotiva atitude de quem age friamente
inalterável forma de se ser sempre diferente
maneira mais complexa de viver mais simplesmente
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto mais se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente
O modo mais saudável de se estar doente
de se ser verdadeiro e revelar-se que se mente
de mentir muito verdadeiramente
de dizer a verdade falsamente
de se mostrar profundo superficialmente
de ser-se o mais real sendo aparente
de menos agredir mais agressivamente
de ser-se singular se mais corrente
e mais contraditório quanto mais coerente
A via enviesada para ir-se em frente
a treda actuação de quem actua lealmente
e é tão impassível como comovente
O modo mais precário de ser mais permanente
de tentar tanto mais quanto menos se tente
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente
de estar mais no passado se mais no presente
de não se ter ninguém e ter em cada homem um parente
de ser tão insensível como quem mais sente
de melhor se curvar se altivamente
de perder a cabeça mas serenamente
de tudo perdoar e todos justiçar dente por dente
de tanto desistir e de ser tão constante
de articular melhor sendo menos fluente
e fazer maior mal quando se está mais inocente
É sob aspecto frágil revelar-se resistente
é para interessar-se ser indiferente
Quando helena recusa é que consente
se tão pouco perdoa é por ser indulgente
baixa os olhos se quer ser insolente
Ninguém é tão inconscientemente consciente
tão inconsequentemente consequente
Se em tantos dons abunda é por ser indigente
e só convence assim por não ser muito convincente
e melhor fundamenta o mais insubsistente
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente
Ruy Belo
Transporte no Tempo
Editorial Presença
1997
4 ª edição
Transporte no Tempo
Editorial Presença
1997
4 ª edição
terça-feira, 19 de junho de 2012
Reenlace
Noite dessas
em que a lua multiplica sombras
e com sua luz mais viva
faz voar a casa
repetida
entre penumbras e contornos luminosos
recomeçou a história
de nossa vida.
A lâmina daquela dor
antes tão fina
reduplicada e agora descoberta
desfez-se em musgo no chão do jardim.
As mãos antes vazias
se detiveram tépidas de enlaces
e as bocas navegaram seus abismos.
O mundo ermo de agora
trouxe de volta o pavor e a delícia.
Sobre as lembranças do corpo
as novas silhuetas confirmadas.
Imagem sem menção de autor.
segunda-feira, 18 de junho de 2012
INSÔNIA
Henri Cartier-Bresson
o dia amanheceu desolado
hora certa em descompasso
acelerada disritmia vertical
des-acordo que se ergue
no escuro noturno sem estrelas
teus olhos dormem
abertos teus sentidos mortos
vivos te perguntam:
- por quê? –
o que sangra nem sempre brota
embusteira sagaz e duvidosa
a vida desenraiza-te
germinando laços às vezes
nós enredados ensimesmados
mesclados ocultos dissimulados
fatalmente despertas:
insônia profunda!
E tu, palavra voz verbo
te manifestas como?
Tantas vezes quis expressar-te
invoquei em vão pronunciei
vocábulos imprecações raivosas
sentimentos incrustrados
nas paredes escorrega
dias de meu corpo
lanhado suado tenso
tecendo num frágil tear
emaranhadas linhas superpostas
quebram-se refazem uma teia
interminável
O que faço contigo, palavra?
se já não consigo conjugar teus verbos versos
teus restos mortais para
onde levá-los
para que sufocá-los
em papel sulfite celofane
de embrulho para presente
de ausências?
hora certa em descompasso
acelerada disritmia vertical
des-acordo que se ergue
no escuro noturno sem estrelas
teus olhos dormem
abertos teus sentidos mortos
vivos te perguntam:
- por quê? –
o que sangra nem sempre brota
embusteira sagaz e duvidosa
a vida desenraiza-te
germinando laços às vezes
nós enredados ensimesmados
mesclados ocultos dissimulados
fatalmente despertas:
insônia profunda!
E tu, palavra voz verbo
te manifestas como?
Tantas vezes quis expressar-te
invoquei em vão pronunciei
vocábulos imprecações raivosas
sentimentos incrustrados
nas paredes escorrega
dias de meu corpo
lanhado suado tenso
tecendo num frágil tear
emaranhadas linhas superpostas
quebram-se refazem uma teia
interminável
O que faço contigo, palavra?
se já não consigo conjugar teus verbos versos
teus restos mortais para
onde levá-los
para que sufocá-los
em papel sulfite celofane
de embrulho para presente
de ausências?
sábado, 16 de junho de 2012
sexta-feira, 15 de junho de 2012
Barrigudinhos, alegrai-vos!
(Palavras de uma psicóloga experiente)
Tenho um conselho valioso para dar aqui: se você acabou de conhecer um rapaz, ficou com ele algumas vezes e já está começando a imaginar o dia do seu casamento e o nome dos seus filhos, pare agora e me escute!
Na próxima vez que encontrá-lo, tente disfarçadamente descobrir como é sua barriga. Se for musculosa, torneada, estilo "tanquinho", fuja! Comece a correr agora. E só pare quando estiver a uma distância segura. É fria, vai por mim.
Homem bom de verdade precisa, obrigatoriamente, ostentar uma barriguinha de chope. Se não, não presta.
Estou me referindo àqueles que, por não colocarem a beleza física acima de tudo (como fazem os malditos metrossexuais), acabaram cultivando uma pancinha adorável. Esses, sim, são pra manter por perto.
E eu digo porque você nunca verá um homem barrigudinho tirando a camisa dentro de uma boate e dançando como um idiota, em cima do balcão. Se fizer isso, é pra fazer graça pra turma e provavelmente será engraçado mesmo.
Já os "tanquinhos" farão isso esperando que todas as mulheres do recinto caiam de amores - e eu tenho dó das que caem.
Quando se sentam em um boteco, numa tarde de calor, adivinha o que os pançudos pedem pra beber? Cerveja. Ou coca-cola, tudo bem também. Mas você nunca os verá pedindo suco. Ou, pior ainda, um copo com gelo, pra beber a mistura patética de vodka com "clight" que trouxe de casa. E você não será informada sobre quantas calorias tem um copo de cerveja, porque eles não sabem e nem se importam com essa informação.
E no quesito comida, os homens com barriguinha também não deixam a desejar. Você nunca irá ouvir um "Ah, amor, Quarteirão é gostoso, mas você podia provar uma McSalad com água de coco". Nunca! Esses homens entendem que, se eles não estão em forma perfeita o tempo todo, você também não precisa estar.
Mais uma vez, repito: não é pra chegar ao exagero total e mamar leite condensado na lata todo dia! Mas uma gordurinha aqui e ali não matará um relacionamento.
Se ele souber cozinhar, então, bingo! Encontrou a sorte grande, amiga. Ele vai fazer pra você todas as delícias que sabe e nunca torcerá o nariz quando você repetir o prato. Pelo contrário, ficará feliz.
Outra coisa fundamental: homens barrigudinhos são confortáveis! Experimente pegar a tábua de passar roupas e deitar sobre ela. Pois essa é a sensação de se deitar no peito de um musculoso besta. Terrível! Gostoso mesmo é se encaixar no ombro de um fofinho, isso que é conforto.
E na hora de dormir de conchinha, então? Parece que a barriga se encaixa perfeitamente na nossa lombar, e fica sensacional.
Homens com barriga não são metidos, nem prepotentes, nem donos do mundo. Eles sabem conquistar as mulheres por maneiras que excedem a barreira do físico. E eles aprenderam a conversar, a ser bem humorados, a usar o olhar e o sorriso pra conquistar.
É por isso que eu digo que homens com barriguinha sabem fazer uma mulher feliz.
(Texto de Carla Mousa: psicóloga, especialista em sexologia)
O oriente da cidade
entre pombos e putas construí poemas
a cidade era lúcida
a radiola de fichas juntava nossas coxas
os retalhos eram enfeites de salão
entre pombos e putas construí poemas
a cidade era música
cama de loucos e as mulheres livres
para o copo para o corpo para as ruas
entre pombos e putas construí poemas
a cidade era à prova de balas
a ponte era à prova de sonhos
a dor visitava o capibaribe
entre putas e pombos construí poemas
Cida Pedrosa, Bodocó (PE) - autora de Restos do fim, Cântaro, As filhas de Lilith.
quarta-feira, 13 de junho de 2012
terça-feira, 12 de junho de 2012
segunda-feira, 11 de junho de 2012
Estou pobre
Estou pobre.
Tardes serão sempre possíveis.
Amarei lavradores, garimpeiros?
Os versos estão secando no pé
E uma gravidez, sem filhos, provoca-me enjoos, solidões.
Estou grávida demais para o tamanho da folha em branco,
Para todas as penitências que virão com o novo parto,
Para os navios que cruzarão meus horizontes - sempre ávidos,
Para o meu lado obscuro, latinizado,
Sempre buscando pistas dos etruscos,
Dos bascos, das penísulas, dos bárbaros, do Lácio,
De onde veio minha língua arguta, minha palavra eva.
A tarde passa e uma voz emudece:
Será perdida no vácuo habitável do entendimento.
Adiante o sol, poeira do dia, o lixo de cada casa,
A varanda que desaparece na quermesse urbana.
Estou pobre de esperas.
Os cofrinhos de porcos alegres e as casinhas da poupança
Ficaram na infância e serviram pra nada.
Sou dada à poesia e desaprendí qualquer lição de sucesso,
Veja minhas economias:
Penso nos adjetivos, nos mestres, nas vírgulas,
Guardo vocábulos arcaicos pra uso futuro,
Escolho novas cascas para o meu eu sáfico,
E a única safra que espero é a poética.
A garrafa não veio com o mar, por isso morro: náufraga.
Perdí um dente essencial ao meu sorriso,
Por isso não rio mais, não faço de simpatias pra mais ninguém,
Não demonstro satisfações, nem lamentos,
Nem ironias tenho mais, nem boca exibo.
Faço sorriso somente por dentro,
Quando filho novo nasce, enche a folha, mexe por dentro,
Sacode tempestade e eu, pobre, viro dona de palácios,
E fico toda avigorada.
Rita Santana, em Tratado das veias - Poesia - Coleção Selo Letras da Bahia, 2006.
Também tem publicados, Tramela (contos) e Mão Cheia, uma coletânea de contos e poemas onde participam mais quatro mulheres baianas.
É editora do blog http://barcacas.blogspot.com
Pensando em WIm Wenders
não prevê híbridos nem bichos tristes
mas tem por objeto apenas
aves
– talvez asas.
A solidariedade
com seus pares de asas instantâneas
e fugazes
dispensa documentos.
Um anjo não seria a data certa.
Os anjos fluem no tempo e não têm fim
cadastro ou classe
– são marcas de fantasia sem empresa
e se eles amam
o amor que irradiam é de outra dimensão.
Não sendo assim um anjo será
Lúcifer, o anjo ambíguo,
se não o amante ideal, perfeito e malvestido.
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