Entrevista com o poeta Domingos Barroso
http://domingosbarroso.blogspot.com.br/
O Bruxo das Letras
Poeta de corpo,
coisas,
carinhos;
Poeta de alma,
armas,
andorinhas;
Poeta de palmas,
pégasus,
pergaminhos;
Poeta de eras,
ermos,
escrivaninhas;
Poeta de marcas,
melancolias,
marinhos;
Poeta de faces,
fundos,
formiguinhas;
Poeta de reinos,
rasgos,
redemoinhos;
Poeta de botas,
brumas,
bainhas;
Poeta de dobras,
deixas,
descaminhos;
Poeta de peso,
penas,
pracinhas;
Poeta de sarcasmo,
sonhos,
sapinhos;
Poeta de escarro,
epifanias,
entrelinhas;
Enfim, poeta espantoso,
tão lúcido, quão louco,
eis Domingos Barroso!
(Cris de Souza)
RV - Beijinho de fã, poeta dos dias (primeiro um chamego)... tua voz orienta minha atenção às coisas singelas, mas tão permeadas de poesia, que nos cercam sem fazerem alarde... e me declaro formiguinha a trilhar pelo meio de teus versos, caladinha quase sempre, mais preocupada em me abastecer de teu originalíssimo lirismo a manifestar a maravilhosa impressão que ele me causa. Noto teus olhos tão tristes e há traços de melancolia em teu versejar, apesar de disfarçada por uma sutil irreverência (ou ironia). Afinal, que sentimentos (ou sensações) mais te acompanham ao escrever... e o que costuma despertá-los? (Joelma Bittencourt)
DB – “Não sou alegre nem sou triste sou poeta”, belíssimo verso de Cecília Meireles. Mas o poeta que sou não é esse hiato, esse interlúdio, esse vácuo entre a alegria e a tristeza. Sou de fato um poeta triste, e a ironia que me salva é apenas o cinismo da própria tristeza. Quando escrevo o único sentimento que me envolve é um sentimento de plenitude e de vertigem [mesmo que nada exista a ser despertado dentro ou fora de mim].
RV - Sou fascinada pela presença das formiguinhas em teus poemas... tanto, que já me ocorreu uma pergunta maluca durante uma das várias leituras em que elas apareceram, líricas... Responde para nós: se as formiguinhas fossem providas de fala, o que gostarias que elas te confessassem sobre Domingos Barroso? (Joelma Bittencourt)
DB – Diriam elas - “Domingos Barroso, às vezes tu nos irritas com tanto realismo fantástico... sai do quarto, rapaz, sê um guerreiro mongol montado no seu intrépido cavalo e o vento a queimar teu rosto... salva-te!”
RV - Meu caro Domingos, o quanto do cotidiano precisa respirar para se inspirar? (Celso Mendes)
DB – Toda a minha poesia é o meu cotidiano [do que está presente ou do que me foi na alma marcado]; e como todo cotidiano poético é um mundo surreal à parte, vejo por necessidade não apenas respirá-lo mas sobretudo com ele trocar de pele. A inspiração é um trabalho constante entre suspirar e morrer sob a ebulição das ideias. Tenho que tirar sangue, muito sangue do olho, e forjar a fogo minha própria carne para que o cotidiano, enfim, faça-se poesia.
RV - O que um Lacaio da Poesia deve saber do feitiço das palavras? (Celso Mendes)
DB – Que as palavras [depois de lançadas ao campo de girassóis] têm mil cores, mil céus e mil mundos imaginários. E que seja humilde o serviçal e saiba despedir-se das palavras quando o vento levá-las além das suas costelas. O silêncio é a outra face do feitiço das palavras: um frio tremendo que rói até mesmo os ossos de uma suntuosa baleia.
RV - Domingos como acontece o seu processo de criação e em que medida a blogosfera influencia ela hoje? (Sandrio Cândido)
DB – O meu processo de criação ocorre quando, primeiro, percebo que o meu olhar se converte [fica um olhar meio dormente, suspenso, absorto e perdido], em seguida o meu coração começa a bater tambor [ora furioso, ora dócil]; não há espaço miraculoso nem clima favorável; escrevo com o que tiver na mão [lápis, teclado, pena de águia, giz de cera, carvão, máquina de escrever Olivetti Stúdio 45]; e se eu estiver dormindo, ou caminhando pelas calçadas molhadas da chuva fina de ontem , então acabo confabulando com os meus fantasmas e peço-lhes que escrevam nas paredes da minha cabeça enquanto acordo ou chego em casa. Por vezes sou abençoado pela cumplicidade poética estabelecida na blogosfera. Curioso que há almas parceiras que mesmo após a remoção dos seus blogs permanecem admiráveis, a maravilhosa poeta Lara Amaral é um exemplo. Embora seu Teatro da Vida não mais exista aos olhos dos meros mortais viajantes, sinto sua poesia viva e febril.
RV - Domingos a poesia hoje parece ter deixado de ser exclusiva dos livros, afinal porque poesia é um gênero a ser trabalhado por você e será que a poesia está condenado a morrer em nossa sociedade do espetáculo? (Sandrio Cândido)
DB – A poesia tem o seu próprio recanto - um deserto florido na alma do poeta, e não importa a sociedade [se uma sociedade espumante ou miserável]; o poeta antes dos livros escrevia nas cavernas e nos marfins dos mamutes e o fogo descoberto não lhe causou tanto espanto, uma vez que dentro da sua alma há outra chama tão impressionante quanto antiga.
RV - Qual será o seu epitáfio? (Sandrio Cândido)
DB – “Saibam os vermes que comem a minha carne que não é carne o que devoram mas nuvens de céus distantes...”
RV - Você adentra o poema e caminha seguro até o final? Ou dá os primeiros passos e logo perde o chão, deixando-se levar por ele? Ou nem isso: já tira os pés antes mesmo de nele entrar? (Wilden Barreiro)
DB – Eu pego o poema pelas mãos, a questão é que as minhas mãos tremem e os dedos começam a dançar ciranda. Aproveito esse embalo e respiro o poema ausente de mim - é nesse momento, sob extrema lucidez poética, que entendo uma coisa: o poeta é o moinho das suas próprias águas.
RV - Um cantinho, um violão... uma estante, um Pessoa... lençóis de cetim, uma deusa....uma mesa, papel e lápis. Qual dessas opções sua alma escolhe? Ou ela, ambiciosa e insaciável, se esquarteja e arrebanha todas? (Wilden Barreiro)
DB – Dá-me então apenas uma deusa para que ela esprema as espinhas das minhas costas e fique acordada até tardão da noite ouvindo minhas loucuras e tolices. Depois eu faria amor com essa deusa e seria pai de duendes e fadinhas.
RV – “Estou a envelhecer, meu bem/ mas ainda espero entrar pela janela/ o teu perfume nem que seja no bico/ de uma andorinha velhinha e sapeca.” Esta estrofe final do segundo poema postado no Lacaio da Poesia apresenta a seus leitores um dos personagens mais assíduos na sua poesia: a andorinha. Assíduos são também as formiguinhas, as xícaras, os travesseiros, as babies, os pombos (sempre de tênis Nike) e... o bermudão! Por quê, Domingos? Bruxos vestem bermudão para melhor apreciar o rebolado das babies, das formiguinhas, das andorinhas, dos pombos, das xícaras e dos travesseiros? (Tuca Zamagna)
DB – Na verdade o que os bruxos gostam é de ficar nus no quarto à espera das andorinhas que adentram pela janela do banheiro. A xícara... ah, minha xícara... ultimamente não me encanta - as duas fissuras que formavam um sorriso na sua circunferência estão totalmente desfiguradas. Os travesseiros são os únicos fantasmas que posso esgoelar e lançar contra as paredes. As ninfas um sonho libidinoso e a cada dia mais neurótico. Os pombos continuam com seus tênis Nike pedindo esmolas e atacando os olhos das rosas dos canteiros das praças. Quanto ao bermudão preciso pô-lo de molho, anda triste dentro do cesto de roupa suja.
RV – “Se durmo bem,/ meus travesseiros não dormem.”... “Tenho flores para cheirar, mel para beber/ e abelhas para ferroar meu rosto.”... “Minha cabana é logo adiante/ seguindo o chiclete das minhas botas”... “Os pombos quando envelhecem/ tropeçam nos cadarços/ dos seus tênis Nike/ desbotados.”... “Sempre assim,/ no instante do idílio/ caem dos céus andorinhas/ infartadas”... “Minha alma é puro ciúme/ do invisível que lambe”.... “Minha alma só deixa meu corpo/ por um motivo: coçar minhas costas.”...
O humor, em geral surrealista, é o que mais me encanta na sua poesia. Mesmo quando a graça não é explícita, pode-se ver a todo instante a sombra sonsa do seu sorriso. Você é um cara sempre humorado, do tipo que ou leva as pessoas a sufocarem de tanto rir quando está de bom humor ou a subirem pelas paredes e pularem de cabeça do teto quando está de mau humor? (Tuca Zamagna)
DB – Em companhia das pessoas sou apenas um lunático. Decerto muitas delas já tentaram pular sobre meu pescoço e torcê-lo de tanto tédio e outras até sorriram com historinhas que conto de bem-te-vis flertando minhocas, dividindo sorvete e tomando banho de sol... A sombra sonsa do meu sorriso: é a mais pura verdade, seja escrevendo versos, sonhando ou com artrite. A sombra sonso do meu sorriso é eterna e creio que até morto, só a caveira, ainda estará lá a sombra sonsa do meu sorriso.
RV – “Eu amo suas panturrilhas/ como nunca amei uma alma.” O poema “Dançarina” é todo ele exaltação a essa parte anatômica mágica do corpo feminino. Para mim (e estou certo de que para você também), elas, por si sós, justificam o uso e abuso dos vestidos e até a criminalização do uso da calça comprida pelas mulheres. Sinceramente, sua libido consegue distinguir uma mulher de pernas radicalmente desbatatadas de, por exemplo, uma saracura, uma siriema, uma avestruz? (Tuca Zamagna)
DB – Cresci vendo mulheres subindo ladeiras com latas d’água na cabeça. As panturrilhas, batatas das pernas, são todo o encanto da minha alma concupiscente.
RV - Conte um pouco sobre como começou a escrever. O que te deu aquele click da escrita nas veias? (Luiza Maciel)
DB – Dentro da barriga da minha mãe era uma dificuldade escrever. A água da placenta apagava tudo que eu escrevia. Então jurei a mim mesmo que logo que viesse ao mundo trataria de escrever feito um louco e ofereceria minha alma como gratidão. “Confesso Que Vivi” do poeta Pablo Neruda foi um atestado de loucura e de lirismo [e eu era uma criança]; passei dias chorando e suplicando aos céus que durante toda a minha vida nunca fugisse de mim aquele encanto. Eu não imaginava em que abismo estava a me meter - um abismo terrível e deleitoso.
RV -É evidente, na poesia, seu poder de sobreviver às mudanças da sociedade, sua capacidade de reinventar-se e manter-se em vigor poético ao longo dos séculos, isso é o que podemos constatar com o crescimento, cada vez maior, dos blogs desse gênero, portanto, eu gostaria de saber: No seu entendimento, a internet banaliza ou favorece a difusão e produção da linguagem poética? (Iracema)
DB – Penso que não importa o tempo e os meios [se versos escritos à sombra dos dedos ou diretamente no tablet de última geração] - a banalização da poesia é responsabilidade exclusiva de quem escreve versos ruins [mas como sabê-los se não escrevê-los?]; um Quintana ou um Fernando Pessoa são eternos porque seus versos são assombrosamente bons. E permaneceriam, ainda que esquecidos dentro de uma gaveta. Do alto número de blogs de poesia atenta-me em muitos deles apenas uma ponte de vaidade e de anseio doentio por seguidores e comentários. Ao criar o Lacaio da Poesia também passei por essa morbidez e tive que me tratar seriamente - passei um longo período escrevendo à luz de lampião e só mostrando meus versos para minhas botas. Particularmente, vivo apagando poemas [ok, sei que é psicose poética] quando encontro alguma falha, como uma palavra deslocada e uma imagem grosseira. Às vezes a composição poética até se vangloria de imagem e ritmo toscos, mas se o poema não é bom precisa ser apagado, degolado, suprimido. Perdi a conta dos rebentos que assassinei por esse mundão de palavras afora. Confesso, sinto um prazer imenso em deletar um enfadonho poema... zap! E rolam cabeças.
RV -Bruxo, o que faz seu caldeirão borbulhar nas noites de luar? (Cris de Souza)
DB –Em noites de luar sinto uma sede de vampiro. No dia seguinte vejo sangue [o meu próprio] da veia que mordi: é uma desgraça ter os caninos tão afiados e um coração tão sonhador.
RV - Como você definiria o lacaio da poesia? (Cris de Souza)
DB – uma criança [ou um louco ou um santo] que escreve versos e desde cedo aprendeu a ultrapassar o corredor escuro e a ouvir as paredes trincando os dentes.
RV - “ O poema pode explodir o coração. “, de Domingos Barroso. Corre mais risco o poeta ou o leitor na oração? (Cris de Souza)
DB – O risco sempre será do poeta. Digo, o risco verdadeiro e sem falsos espasmos. O leitor de poesia, consciente e límpido, há de manter uma íntima distância [daí se ouve melhor o coração do poeta]. Aliás, o que o poeta sente já é um mundo de coisas suspensas. O leitor se é para morrer ou exaltar-se de júbilo, faça-o apenas enquanto o poema é lido, depois esqueça o poema, esqueça o poeta e aprecie a vida na sua forma mais simplória. O poeta deveria fazer o mesmo, mas é inútil. O poeta é delicado e humano demais para ver outra vida com outros olhos senão os seus de passarinho epiléptico.
RV - A tua poesia consegue a sublimação das coisas simples: uma formiga ou um chinelo são tão carinhosamente tratados liricamente como a mulher ou a própria alma. Opção estética ou o reflexo do teu olhar sobre a vida? (Jorge Pimenta)
DB – Creio que o maior milagre de todos é quando o poeta troca de pele e de alma com as coisas ao seu redor ou com aquelas já adormecidas em sua memória. A epifania que transborda dessa comunhão [acredito piamente] é a plena salvação do poeta. Permita-me contar uma historinha, quando era bem pequeno [cinco ou seis anos] estava brincando no quintal e senti uma vontade de grávida de comer farofa de ovo, alonguei-me então a flertar uma galinha tão delicadamente que diante dos meus olhos a galinha pôs um ovo, peguei-o maravilhado e fizeram-me uma farofa. Matei a fome e a partir desse dia entendi uma verdade: podemos amar as coisas [bichos ou objetos] como se amássemos gente. O que escrevo, sobretudo o que escrevo encantado, é apenas o meu coração fiel à delicadeza, a mesma delicadeza daquele dia em que troquei de alma com uma galinha e comi farofa de ovo.
RV - Aprendi, em hermenêutica, que a reiteração de uma ideia, de uma palavra, de uma sensação a torna chave na construção textual. A alma e o pecado são conceitos recorrentes na tua poética. Que relação mantêm um e outro com o eu-lírico e o próprio poema? (Jorge Pimenta)
DB – Quando sou tomado pela maravilha de construir versos o que me estimula é aquela atmosfera mágica entre um tijolo erguido pela mente e outro tijolo pelo coração. Tenho absoluta consciência dos meios briosos [e muitas vezes medíocres] de trabalhar um poema. Por isso, escrevo atento e disperso ora observando a mente em sua labuta, ora observando o coração em seu ofício próprio. É fácil sumir o poema se o poeta principiar apenas pela técnica, como é notória a tolice de um eu-lírico em que tudo é encharcado de suspiros. Sinceramente quando sou tomado pela maravilha de construir um poema o que mais desejo é aquele acidente vascular poético cujo sangue é um sangue novo que queima minhas veias. Não há ideias, palavras ou sensações que valham a pena quando o poeta não os merece, e para merecer esse mundão de magia e de cristalina consciência o poeta há de ser apenas verdadeiro com sua morte [que é um renascimento].
RV-- Confesso-me uma admiradora ardorosa e comovida com sua poesia. Minha primeira pergunta é muito simples: A solidão é boa companhia? Rossana Mazza)
DB – A solidão é uma entidade louca, portanto procuro fugir dos seus olhos quando escrevo. Para mim, escrever não é um ato solitário, mas um sopro de plenitude. Solidão apenas quando termino o poema e me vem ao rosto aquele vento frio.
RV - - Em sua poesia, você cria uma essência mágica para todas as coisas. Tudo têm alma: objetos, personagens e animais. Tudo tem uma existência além da material.Será por isso que lhe chamam de “bruxo”? (Rossana Mazza)
DB – “Bruxo” foi um carinhoso apelido [presente da belíssima poeta Cris de Souza], mas a minha alquimia é simples e patética: o máximo que consigo quando estou em transe e ver meu coração colado no teto junto da lâmpada; e se apago a luz, vejo meu coração brilhando em chamas. Bruxo mesmo é Machado de Assis. “Ao vencedor, as batatas!”
RV - - Sua poesia é confessional ou existe um “eu lírico” que finge que é dor a dor que deveras sente? Quem lhe influencia? (Rossana Mazza)
DB – Tudo [absolutamente tudo] que escrevo me corta a pele. Às vezes me perco lendo um poema e chorando feito um recém-nascido distante dos seios da mãe O exagero do poema nada mais é que a timidez do poeta, mas ambos [exagero e timidez] são verdadeiros e pungentes. O eu-lírico é uma realidade espantosa e a sua voz também é confessional. Os fantasmas da minha mente [tagarelas e melindrosos] são os que mais me influenciam quando escrevo, e eles já leram uma legião de seres fantasmagóricos. No momento estou diante de Goethe e já sinto saudades de Ezra Pound.
RV – Domingos, conheci a sua poesia relativamente há pouco tempo e gosto muito dela. Passeando pelo Lacaio e voltando lá para o comecinho do blog, deparei-me com um verso do poeta, no qual ele diz: Mas como o fim se aproxima/ deixo-te no mais lindo sonho/ (ainda dormindo) e me mando/ pra minha vidinha de sempre. Minha pergunta é: como é a “vidinha de sempre” do poeta Domingos Barroso? Qual a distância que separa o poeta Domingos (“o Bruxo”) do homem Domingos? (Tânia Contreiras).
DB – A minha vidinha de sempre no meu quarto largado na cama com o olhar perdido ou no trabalho debaixo do sol com uma cruz ao ombro nutre-se da mesma alma. O meu ser não se divide, não há um rio apartando margens. Pode parecer loucura, mas não há separação entre o poeta Domingos Barroso e o homem Domingos Barroso. A minha cabeça e o meu coração são os mesmos. Não há dia em que eu acorde e não pense em versos [sei que é um caso patológico] ou que eu durma sem ter vivido o dia poeticamente. À mesa ou caminhando não penso em outra coisa senão em tirar proveito da poesia do instante. Não entendo quando algumas pessoas me perguntam o que me inspira ou que tipo de poesia eu faço, ora não existe coisa na minha vida que não se reverta em poesia: desde a rachadura da parede ao pé de um pombo. E as imagens da minha infância? E os objetos ao meu redor? E as ideias borbulhando? E a artrite do corpo? E o silêncio da alma? E os sonhos impetuosos? E a razão do tempo? Parece mesmo loucura, mas sou o que sou: um poeta sem trégua. E mesmo que eu não escreva [angústia dilacerante] continuarei sendo, seco, moribundo, mas ainda um poeta.
RV - Qual a importância legítima da poesia em sua vida? Existe um empenho diário e constante de sua parte ou trata-se de uma expressão sazonal? Quem é o Domingos afora a poesia? (Rossana Mazza)
DB – Se me faltasse a poesia me faltaria a alma e sem alma eu seria um espantalho sem cabeça debaixo de uma tempestade de fogo e de alfinetes de gelo.
RV - Domingos, querido, tua poesia aborda com maestria as questões do cotidiano da alma, muitas vezes tecendo-se entre o abstrato dos sentimentos e questionamentos, e as imagens dos objetos mais corriqueiros. Como a tua pena costura essas imagens, o que te faz descrever os sentimentos passeando por estes objetos do dia-a -dia? E há casos em que esta associação possa ter uma significância maior dentro da tua poesia, como por exemplo no caso das botas, citadas em vários poemas? Imenso abraço, poeta!" (Andréa Godoy)
DB – As minhas botas são especiais - um casal extremamente simpático. Foram as minhas botas que me ensinaram a olhar com doçura para o que trazemos para dentro do quarto. Um dia descobri uma rosa colada na sola do pé esquerdo e na sola do outro pé uma tampinha de refrigerante. Há encanto mais encantador?
RV - Domingos, em alguns poemas seus, percebo uma leveza, um senso de humor, difícil de se alcançar em meio aos conflitos e sentimentos intensos que a poesia carrega. Você tem o controle dessa expressão? O tom é intencional? (Lelena Camargo)
DB – Controle não tenho, já que as batidas de asas do meu pégaso
muitas vezes me derrubam sobre um arco-íris, e nós sabemos que quando se desliza pela curva do arco-íris não se sabe o que há lá embaixo. Há versos tão plenos de si mesmos que só me pedem pouquíssimos reparos, então racionalmente bobo introduzo no poema alguns olhares infantis [são os mais espirituosos], sobretudo quando o poema me parece garboso demais. Sim, vivo ciente das minhas travessuras, daí a sombra sonsa do meu sorriso - como diria Tuca.
RV - O teu universo lírico, Domingos, é povoado de pequenas criaturas em desassossego. Assim como o sentidos remetem a uma paisagem surreal, embora carregada de fragmentos da realidade. Como você (a)borda essa teia poética? E uma pergunta fora de contexto: existe manual para domar formiguinhas? (Assis Freitas)
DB – É bom tecer com o que temos na mão - eu bordo extensas e coloridas mantas que envolvem seres fantásticos porque são eles a minha realidade; e para domar formiguinhas não bastam migalhas de pão e colherezinhas de açúcar. Confidencio para os incautos nesse ramo que formiguinhas não gostam de comida na boca [como alguns profissionais adestram cãezinhos]. Formiguinhas só se dobram o gênio e se entregam quando o sujeito olha nos seus olhos profundamente e beija-lhe a boca. Mas deve-se ter muito cuidado, há formiguinhas que odeiam a saliva humana, principalmente a de poetas românticos [o meu caso]
RV – “A minha vida é uma multidão onde, não sei quem, em vão procuro/o meu rosto», gravou em verso Manuel António Pina; onde o rosto do Poeta? Onde na multidão, sozinho no espaço, à procura de infinito, onde o “rosto” do poeta no poema? (lLeonardo B.)
DB – Nos versos que escrevo brilha todo o meu rosto [e mais aqueles olhos ocultos que observam o mundo e tateiam a vida]. A multidão não vive fora, tampouco o deserto - o meu infinito poético explode da junção desta consciência, eis a graça.
RV - E por gravar versos, escreveste um dia que “Um poeta desatento é uma palavra/ intrusa que aborta e sangra/ o poema.”: onde te começa esse infinito do Poeta, essa reflexão entre o homem (uns diriam de seu destino, vá…) e o seu sentido da vida, enquanto aprendiz de Infinitos, enquanto Poeta Atento? (Leonardo B.)
DB – Sinto uma pontada no coração quando perco um poema pelo simples fato de estar distraído [ingrato com o momento mágico]. Para escrever ungido do instante poético é preciso que eu seja zumbi e borboleta debruçados sobre os versos. Os zumbis lembram-me que um dia conheci de perto a terra e os seus vermes, e as borboletas que fui céus e nuvens. O meu destino é montado todos os dias, verso a verso, e o meu infinito [para meu deleite] muitas vezes engana meu olhar e a perspectiva que suponho ter do espaço e das sombras.
RV - Domingos, há uma passagem num livro de Thomas Mann, Sua Alteza Real, em que é promovido um concurso de poesia, e o poema vencedor era um verdadeiro hino de exaltação à vida, seus males, mas suas infindáveis belezas e delícias também, tudo escrito na primeira pessoa. O Rei quis então saber do poeta como ele fizera aquilo: imaginara? vivera aquelas experiências? O poeta responde que era apenas intuição e imaginação (tal como F. Pessoa dizia que sentia com a imaginação), que se vivesse daquela forma sequer teria tempo e disposição de escrever, que na verdade levava até uma vida bem tranquila e regrada. O rei conclui dizendo que a nossa imaginação cria uma quadro bem diferente da vida dum poeta. Como você vê isso, essa coisa do poeta-personagem? E você se vê como um personagem de seus poemas? (Marcantonio)
DB – A imaginação não é um truque, uma fraude, um logro, ao contrário, a imaginação carrega em si mesma um mundo tão real quanto aquele que aprendemos a ver como uno. Quando escrevo versos o meu corpo muda [pulso, suores, batimento cardíaco], logo torna-se então uma realidade plausível. Muitos diriam que os sonhos também causam humores fisiológicos, digo – os sonhos também são reais. Por isso mesmo não comungo do espírito de que o poeta é um mentiroso e que tudo que escreve são viagens etéreas. Lembrando Fernando Pessoa [no seu famoso poema sobre fingimento e dor] se observarmos atentamente o que o imenso poeta português alumia, perceberemos – o mundo que o poeta sente, embora muitas vezes profundamente quimérico, é a sua mais transparente realidade. A única personagem que sou, sou eu mesmo e não há cisões. A vida de um poeta é uma realidade especial - em toda a sua grandeza e em toda a sua miséria.
RV - A sua poesia se dá num espaço muito intimista. O que significa para você a sua terra? (Marcantonio)
DB – A minha terra é onde o meu coração bate, e o meu coração vive deslocando-se entre minhas costelas; às vezes sinto o cheiro do tempo em que as folhas das mangueiras do casarão dos meus avós eram peixes de Isla Negra, mas só penso e me silencio. Sei que pouco canto sobre minhas serras e minhas fontes [nasci no Crato, na região do Cariri cearense] talvez eu ainda tenha muito o que morrer pela minha aldeia. Ou, possivelmente, tudo que vivi lá gravara-se definitivamente dentro da minha alma, sem alarde sob a forma de uma memória intocável. Pensando bem, creio que minha terra é o meu cordão umbilical do qual só tenho lembrança que foi embrulhado e lançado ao telhado. Choveu muito desde então, e as águas que levaram meu cordão umbilical ao fundo da terra talvez me tenha fertilizado e eu seja agora uma árvore [ah, alegro-me] uma árvore fincada no meu vale caririense...
RV - Se você fosse um pintor, o que preferia pintar: interiores como o quarto de Van Gogh? Paisagens exóticas como as do Gauguim do Taiti? Naturezas-mortas cubistas como as de Picasso e Braque? Ou as constelações de Miró? (Marcantonio).
DB – Paisagens exóticas, claro, ao lado de uma nativa - e depois pintaria a própria nativa em um fabuloso nu artístico. Passaria décadas pintando, mudando a pequena de posição e a luz de tonalidades [é que as nativas são impressionantemente sensuais e de um brilho no corpo estonteante...].
Participaram desta entrevista:
Joelma Bittencourt, Celso Mendes, Sandrio Cândido, Wilden Barreiro, Tuca Zamagna, Luiza Maciel, Iracema Buscaccio, Cris de Souza, Jorge Pimenta, Rossana Mazza, Tânia Contreiras, Andréa Godoy, Lelena Camargo, José de Assis Leonardo B., Marcantonio Costa