quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

"Só reconhece as sombras quem já viajou pela luz”




Entrevista com o poeta português Jorge Pimenta


RV - Jorge, meu amigo... adoro te ler! Pelos comentários em teu blogue percebemos o quanto teus textos são bem recebidos pelo público leitor. Mesmo com essa admiração explícita pelo que tu escreves, bate alguma insegurança em relação à qualidade de teus textos? (Joelma Bittercourt)
JP - Joelma, num primeiro assomo, o texto é apenas sopro de olhar uterino; a relação com o exterior surge mais tarde, depois de parida a cria, lambida, despida das secreções e vestida. Mas, mesmo assim, tantas vezes o poema se faz Lianor que, descalça segue para fonte “fermosa e não segura”... Mas nunca o dou a ler antes da publicação, confesso.
Essa insegurança não é adstrita ao momento da postagem no blogue; raramente releio os meus textos à posteriori, mas quando o faço, algum tempo mais tarde, tendo a mexer-lhes, a despi-los deste adorno e a revesti-los daquele; e neste diálogo quase interminável, apercebo-me que somos, de facto, os textos: eles mudam connosco e jamais permanecem atolados numa única franja de tempo.


RV - Teu modo simpático e gentil de tratar a todos que te cercam no meio virtual e a demonstração de uma leitura atenta, percebida pelos comentários que fazes, devem ser algumas das causas da grande simpatia e carinho que despertas nas pessoas com que te relacionas através de blogues ou que falam a teu respeito em outras circunstâncias virtuais. Como recebes este carinho todo? Beijinho de sua amiga e fã eterna! (Joelma Bittencourt)
JP - A minha relação com o blogue é já antiga; comecei com o circum-viagem em novembro de  2007 [que correspondeu a uma fase particular da minha escrita e, por que não dizê-lo, da minha vida]; seguiu-se-lhe, após um curto interregno, em setembro de 2009, o atual viagens de luz e sombras. Move-me a partilha pela palavra, sendo ela o ponto de entrada e de saída de todas as relações que neste mundo, real ou virtual, consigo estabelecer. E é por ela e nela que comento, que replico, que distendo, que silencio… Nem sempre as ligações se perpetuam [nada na vida é definitivo e – esta é mesmo a citação que mais vezes invoco – “nada te pertence; tudo é de tudo o que passa” [Jordi Virallonga]], razão por que sigo, dessigo, seguem-me, perdem-me o rasto. É natural, na vida há momentos em que temos maior ou menor apetência para, maior ou menor disponibilidade para, maior ou menor empatia com, todavia, enquanto a palavra aproximar, eu estarei presente.
Já em jeito de nota de rodapé, acrescentar que, nalguns casos, a palavra ganhou forma e fez-se gente, gente de verdade. Sim, fiz amizades verdadeiras na blogosfera, amizades na terra que piso mas também amizades além-oceano, amizades que prezo, alimento e valorizo, algumas delas já chanceladas pelo abraço de carne e osso.


RV - Jorge, amigo querido, creio que compartilhamos duas grandes paixões: a poesia e a educação. E quando penso nessas paixões, a palavra “desejo” (das mais bonitas que conheço) materializa-se diante de mim, fazendo-me pensar que para ensinar, para aprender e para fazer poesia é preciso que nos reconheçamos como seres desejantes. Não falo isso pensando apenas em Freud ou Lacan, que de forma tão brilhante permitiram tantas reflexões sobre o papel do desejo nas nossas vidas. Falo porque vivo a desejar! Vivo a pensar que poesia e educação ocupam em mim um mesmo espaço de entregas e delicadezas. Então, meu amigo, pergunto: qual o lugar da falta e do desejo no teu espaço de criação como poeta e como educador? Beijos carregados de carinho e admiração, Jorginho! (Dani Delias)
JP - Dani, o desejo é uma inerência de quem respira.
Todas as projeções positivas que deixamos germinar dentro de nós procedem do desejo. Assim, aquilo que mais genericamente designamos de felicidade e utopia prende-se com a questão do que pretendemos, por um lado, e do que realmente conseguimos tocar, por outro. Ora, na minha vida, a poesia e o processo de ensino-aprendizagem ocupam um lugar-charneira, o que desde logo os transforma em territórios amplos do sonho e de [quase] todas as utopias, lugares que bordejam os limites das emoções e da racionalidade. Tocar o coração de um jovem com um poema ou tocar o coração de um poema com o olhar de um jovem são tarefas que procuro harmonizar, nunca perdendo de vista as aprendizagens puras e duras. Mas, como em tudo na vida, aprendemos e problematizamos muito mais aquilo de que gostamos do que aquilo que nos impõem ou não nos interessa.
Difícil para mim, por vezes, é harmonizar o que sinto ou penso como objetos de desejo. Mas, porque não estabeleço fronteiras entre as malhas da razão e as do coração, considero que o professor e o escrevente tendem a completar-se tão bem quanto as duas funções vitais humanas anteriormente citadas. Aliás, o que seria de D. Quixote sem Sancho Pança?...


RV - Jorginho, a vida e a poesia podem caminhar juntas ou podem tomar caminhos diferentes e até contraditórios? (Tânia Contreiras)
JP - Taninha, não conheço outra forma de me relacionar com a poesia que não seja deixando a vida entrar nela. Do mesmo modo que nenhuma vida o é inteiramente sem poesia e o que de mais profundo a poesia nos deixa tocar. O que são uma e outra senão respiração, afinal?
E a dualidade poeta/sujeito lírico? E os limites de um e de outro? E as mentiras, onde começam, e as verdades, onde acabam? E as certezas efabuladas e as meias verdades escondidas? Nenhuma retórica poética desvincula aquele que canta do que sente; estou convencido de que nem mesmo no lirismo trovadoresco, quando os trovadores se transvestiam de mulheres suspirando pelo amigo que partira para o fossado.


RV - Há palavras que ardem e nunca chegam à boca, que nunca se tornam versos? Como lidas com elas? (Tânia Contreiras).
JP - Há palavras que ardem, que queimam, que fazem morada na boca mas que nunca chegam a ser mais do que pólvora seca em campo de batalha. Outras, surgem discretas, primaveras noturnas, assobio azul a iluminar a garganta, pássaro de veias cegas ou flores sem mão. Ah, do tanto que somos pela palavra e do tão pouco que conseguimos ser com ela... fatalidade ou recompensa?


RV - O poema espanta a morte? (Tânia Contreiras)
JP - Com o poema morremos e voltamos a viver e não raras vezes me espanto com cada um dos meus morreres... mas quem não precisa por vezes de sangrar, de estourar os músculos, quebrar os ossos e morrer… para saber voltar a viver?


RV - Sinto forte emoção em todos os seus poemas e comentários Esta emoção faz parte do poeta ou do homem Jorge Pimenta? (mirze souza)
JP - Mirze, o poeta é um plantador de sonhos. E o homem, será alguém muito diferente?
Sei não ser poeta, mas sou homem com voz, homem que sente o que escreve e que escreve o que sente na [re]criação de todos os seus mundos. 


RV - Jorge, como você chegou a se dedicar à poesia? E, considerando sua juventude, a partir de que idade? (Dade Amorim)
JP - Dade, é curioso mas sempre fui mais leitor de prosa do que de poesia. Em miúdo lia Enid Blyton, Júlio Dinis, Júlio Verne, Soeiro Pereira Gomes e muita banda desenhada. Na juventude, conheci Eça, Garrett, Camilo, Hemingway, Saramago e todos os neorrealistas. Ao bater na idade adulta, e por influência do curso de Português e Inglês que frequentei no Ensino Superior, conheci alguns ingleses e norteamericanos que me marcaram indelevelmente. A poesia continuava a ocupar um lugar residual até que, por fim, por volta dos 20/25 anos, conheci Al Berto, Herberto Helder, Eugénio de Andrade, Eliot, Neruda, Lorca e Sophia que me levaram a sentir a leitura, a escrita e a tarefa homérica de ser homem por olhos diferentes dos que tinha. Comecei a escrever coisas banais, espontâneas, simples e tantas vezes simplistas mas que me apaziguavam apontando todos os caminhos que a pluralidade dos passos exige. Eu mudei, a escrita mudou. Sinto-a, hoje, como igualmente pele, mas mais invocativa, reflexiva e sugestiva do que referencial. Este jogo foi ganhando forma nos contactos com gente que escreve, primeiro presencialmente, aqui em Portugal [cheguei a participar em alguns encontros e fóruns de poesia com a Ana Salomé, a Laura Alberto, o Henrique Barroso e outros]; depois, mais abrangentemente, com o blogue; visitei ainda, por convite, algumas escolas do norte do país para conversas com alunos. Hoje, a escrita surge como prática regular, ainda que muito mais disciplinada do que dantes; se o não fizesse, provavelmente não teria condições para escrever. 


RV - Qual o lugar da poesia em sua vida? Pela frequência e pelo modo como são trabalhados seus poemas, a impressão é de que se trata de um empenho diário, constante. É isso mesmo? E que poetas você considera que te influenciaram mais? (Dade Amorim)
JP - A poesia está comigo diariamente. Mesmo sabendo que apenas ao fim de semana escrevo [no sentido formal do termo], a verdade é que no meu quotidiano profissional falo [e escuto] de poesia, de poetas e do tanto que nos oferecem. Por outro lado, nos intervalos da vida leio e releio aqueles que no momento se fazem luz e inspiração. Aos nomes que citei na pergunta anterior, juntaria os poetas Nuno Júdice, José Luís Peixoto, Ramos Rosa, Sousa Braga. E depois há os clássicos: Pessoa, Sá Carneiro, Torga, Cesariny, Pessanha… lidos e relidos sem que o tempo amareleça as suas páginas, mas os dedos que as percorrem. Além-fronteiras, há Dylan Thomas, Ezra Pound, Baudelaire sem esquecer o imenso Rimbaud [é verdade, confesso que o meu conhecimento do universo poético brasileiro é esparso e descontínuo].
Não posso esquecer, também, aqueles que sem o estatuto dos maiores, são-no na imensidão da sua poesia que percorro e me percorre a cada viagem. Aqui mesmo, na blogosfera, todos os aqui em diálogo comigo, nesta entrevista.


RV - Você é daquele tipo de poeta se debruça somente sobre a palavra? Ou encontra esse feitiço também em imagens, filmes, na vida de todo dia? (Dade amorim)
JP - Quase nada faço sem música, a minha música. E não, não sou erudito nem tenho qualquer formação clássica. Desde miúdo que agarro na música que me toca, a que me acelera a respiração e estimula o lóbulo esquerdo do cérebro, e isso tanto sucede com os violinos de Paganini como com as guitarras elétricas de Interpol; tanto sucede com a voz imaculada de uma soprano como com as navalhas guturais de Trent Reznor.
O mesmo sucede com a pintura e o cinema. Na verdade, não raras vezes consigo adivinhar uma galeria de imagens a desfiar diante dos olhos da minha imaginação como numa tela surrealista ou expressionista; como num filme de Stanley Kubrik ou de Manoel de Oliveira, ora em planos aproximados, ora de fundo, tanto em vertigem como a passo lento, umas vezes a estalar de gozo, outras em absoluta desorientação.


RV - Caro Jorge, vê-se em tua poesia uma contemporaneidade que nos remete aos mestres da literatura portuguesa atual. Evidente e natural a influência dos grandes autores sobre a formação de um bom escritor. E tua escrita não as nega: é uma maravilhosa combinação de palavras artesanalmente manipuladas com um traço próprio, bem definido ainda que imprevisível, que já aprendi a reconhecer à primeira leitura. Mas, e a música? Toda postagem tua acompanha-se de um “trilha” musical (aliás, sempre de muito bom gosto). A pergunta: qual a influência da música em tua escrita? Teus textos se inspiram em algumas ou simplesmente as encaixa em tuas postagens após compor? (Celso Mendes)
JP - Celso, na verdade não costumo engendrar um esquema pré-definido nas minhas postagens, mas habitualmente há uma ideia, uma palavra, uma colocação que me remete ao desenvolvimento de um texto e das relações que a partir dele estabeleço com a música e a fotografia/pintura [mais recentemente, também com as palavras dos outros, na epígrafe que habitualmente acompanha a postagem]. Mas esta combinação acaba por ser mais ou menos espontânea, até porque, sendo razoavelmente eclético e nada fundamentalista, a verdade é que há uns matizes que marcam as minhas estéticas de preferência, seja na literatura, seja na música. 
Uma derradeira nota que surge a título de curiosidade: a minha ligação à música surgiu antes mesmo da ligação à literatura. E ainda hoje, ao chegar a casa, ligo mais rapidamente o sistema de som ou o mp3 [consoante as tarefas] do que a televisão [esta cada vez mais confinada aos jogos do meu Benfica e, a espaços, do noticiário que verte, inverte e reverte a seu bel-prazer o mundo da informação].


RV - Agora um bate-pronto. Sei que é difícil, mas queria que respondesses com um só autor para cada pergunta (Celso Mendes):
JP - a) Um poeta português? Al Berto
b) Um poeta brasileiro? Ferreira Gullar [que só agora começo a descobrir]
c) Um poeta de que não seja de língua portuguesa?  Rimbaud


RV - Jorge, tua poesia é extremamente "anatômica". É a palavra [a tua, em específico] "uma extensão do corpo"? (Marcelo Novaes)
JP - Marcelo, metade de nós é pele; a outra metade memória da pele. Sim, há corpo, mesmo nas questões etéreas [afinal, até Deus, na sua infinita imaterialidade, um dia se fez corpo, sangue, e dor].
De resto, o poema como corpo de mulher é sempre das imagens que mais me seduzem…


RV - Os poetas brasileiros que conheci na escola não me agradavam, mas alguns portugueses, sim. Foi através de nomes como Camões e Bocage que cheguei a Fernando Pessoa e Mario Sá Carneiro – e estes me reencaminharam ao Brasil de Gregório de Matos, Jorge de Lima, João Cabral e Drummond. Como é a sua história com a poesia luso-brasileira? (Tuca Zamagna)
JP - Tuca, curiosa a tua viagem por terras distantes para, por fim, aportares na terra-mãe, hein? Sabes, na escola, e enquanto jovem aprendente, a poesia nunca me seduziu. Preferi sempre a relação com os grandes romancistas, em contexto escolar, porque as narrativas sempre estão mais próximas da vida entendida na sua sucessão de eventos e hiatos. Já a poesia faziam-na autópsia de um corpo que nos era desconhecido: cada poema objeto de comentário, na escola, era esquartejado como um cadáver na mesa fria de mármore, elegendo o todo como a soma de partes, de modo estruturalista, desligado, sem respeito pela essência que a germina: a alma de quem concebeu o poema e, no limite, a sua própria alma. Por isso adorei estudar, nos bancos da escola, O Crime do Padre Amaro, Os Maias, Eurico, o Presbítero, A Sibila, O Judeu…, mas os grandes poetas, na escola, fizeram-se-me [fizeram-nos] sempre mínimos. Foi pela mão de Sophia, em casa e no meu tempo, que descobri a magia da palavra poética. E, daí para diante, tudo se me revelou epifânico. Mais tarde, Pessoa ajudou a reconjugar todos os pedaços inominados nas minhas viagens solitárias, não académicas, pelas marés dos versos.
A propósito, Ruy Cinatti, poeta português, escreveu que no dia em que os seus poemas viessem a ser incluídos numa seleta escolar, ele morreria. Percebo-o perfeitamente, e é justamente por essa razão que, hoje, procuro junto dos meus alunos muito mais as reações afetivas individuais para, numa segunda instância, chegar às transindividuais e só depois, por fim, à ciência do texto [que mais não é do que a conjugação de todas estas dimensões num tecido harmonioso]. Estou convicto de que assim estaremos mais perto de ajudar a gostar de ler [e até fazer] poesia.


RV - Antes de começar a escrever, às vezes leio textos jurídicos e dicionários para... me inspirar! Você tem alguma mania a esse respeito, algum ritual propiciatório? (Tuca Zamagna)
JP - Não, nenhum ritual. Apenas o tempo que, em alguns momentos, se faz demasiado breve para a imensidão da página em branco. Mas, nesses casos, não vale a pena forçar.


RV - A tua poesia tem uma carga imagética impressionante, um poder de amalgamar seres e coisas com impressionante força poética, um canto caleidoscópico impregnado de universalidade. Como você descreveria o ato de criação literário, aliando intuição e racionalidade nesse mister? (Assis Freitas)
JP - É curioso entrares na minha escrita pela imagética, Assis. Mas nem sempre foi assim… Momentos houve em que, pela escrita, procurava alinhar um raciocínio que encaixava nas cápsulas das palavras; aqui, a revisão, entendida como processo recursivo e moderador, foi sempre a primeira conselheira e o texto era eminentemente reflexão.
Noutros momentos, a escrita foi sobretudo pele em eco que rapidamente fugia pela voz encarnada, que bombeava sensações e emoções líquidas. Aqui, a intuição e a espontaneidade foram as marcas inevitáveis.
Mais tarde, a escrita voltou a mudar. Não consigo dizer se para melhor, se para pior, do mesmo modo que não consigo conscientemente explicar porquê. Simplesmente mudou e confesso que corresponde às minhas necessidades atuais, por me permitir saber que cada palavra dita [sentida, pensada, quase sempre vivida] é um espelho não de uma realidade mas de todas as realidades que nela caibam, num exercício onde intuição e razão são os motores de toda a dinâmica criativa e geracional. É inevitável que, por vezes, os espelhos se projetem uns sobre os outros, abrindo galerias de reflexos que podem ser tão mais extensas ou breves, tão mais coloridas ou sombrias quanto mais claras ou escuras forem as íris daqueles que as ousam navegar. Sinto que neste jogo de significações e projeções pela palavra cabem o mundo e todos os seus [meus] mundos.


RV - Jorge, olhando o seu blog, percebi que você publicou em 2011 praticamente a metade de posts do que havia publicado em 2010. Essa redução foi uma opção, uma decisão consciente? (Lelena Camargo)
JP - Lelena, tenho perfeita noção disso. Houve uma fase da minha vida em que todos os meus círculos em chamas apenas se amansavam na escrita. E tornei-me voraz na entrega a este auto-de-fé, razão por que escrevia e publicava no blogue com muito maior frequência do que agora. Descobri, às minhas custas, que existem abismos de vida e morte na raiz do homem que escrita nenhuma preencherá, ainda que consiga agitar e remexer quase todos os silêncios. 
Presentemente, estou envolvido em projetos diversos na minha vida profissional que me compelem a ser mais metódico, disciplinado e até constritivo no que ao ato de escrever diz respeito. O que até parece uma enorme contradição, ou não fosse a poesia o antípoda do que acabo de dizer. Mas, se é verdade que o processo criativo ocorre em cada som crepitante que passa veloz por nós, no dia a dia, não o será menos que o ato criativo, em si mesmo, tem o seu tempo próprio no calendário do meu tempo. Em síntese: decisão consciente, mas por tudo quanto expus, opção determinista, é verdade. 


RV - O que você recupera quando escreve e de que você se desfaz se é que se desfaz de algo??? (Lelena Camargo)
JP - Desde que comecei a escrever que inaugurei uma gaveta dos escritos ou quase-escritos. São papéis sem ordem, sequência ou tempo; apenas depósito do que rasurei, imaginei, previ, adivinhei, destruí. Há momentos [raros] em que passo por lá e sorrio, umas vezes por associar cada letra à interjeição experiencial que o suscitou; outras vezes por nem saber o que querem dizer ou mesmo o que fazem ali. Nunca os recupero, mas não me desfaço deles. Se a poesia é uma obra em permanente reconstrução, conjuntamente com o projeto humano que o enforma, todos os pedaços – até mesmo os proscritos – são peças de encaixe seguro no puzzle máximo a que chamamos vida.


RV - Jorge, a poesia o visita com frequência ou você é que costuma passar na casa dela? Ou será que há algum lugar determinado para encontros furtivos? (Wilden Barreiro)
JP - A poesia, Wilden? Quantas vezes a pedi em casamento? Quantas vezes lhe pedi que morasse comigo? Quantas vezes lhe estendi os braços? Danada, ela ora sorri, ora fecha o rosto; ora abraça, ora abandona; ora coleciona, ora dispersa; ora chega, ora vai… quantas vezes a tenho por estrela mas ela apenas cresce, húmida, na rocha musgada?
Encontros furtivos são o que melhor a define… Ela chama por mim em pequenos nadas do dia, quando lhe apeteça, mas há momentos em que, por razões diversas [muitas delas associadas às exigências quotidianas], apenas replico com um olhar furtivo, um mover de sobrancelhas ou um deitar a palavra à esquina do texto. Ela sabe que eu a espero; ela sabe que não a esqueço, mas só mais tarde, já no controlo do tempo, lhe assobio e a convido entrar. Lamentavelmente, tenho de lhe impor os tempos, reservando-lhe o direito de se fazer, ou não, presente.


RV - Jorge, tua poesia é das melhores que conheço, sempre me faz imensamente bem quando te leio. Nos teus poemas, além da belíssima construção e das imagens que evocas, percebo sempre uma enorme profundidade, mais do que isso, uma densidade que eu poderia dizer característica da tua escrita. Com isto vem a minha pergunta: nestas viagens de luz e sombra como é feita a composição da tua poesia? Onde age a luz e onde as sombras quando tu escreves? Será que viajar pela porção sombra, que todos nós carregamos, alimenta mais a poesia do que a porção luz? Beijos, amigo tão querido. (Andréa Godoy)
JP - Andrea, querida, tenho dificuldade em perceber onde a estrada da poesia começa e acaba, do mesmo modo que quem nos acompanha ao longo da viagem. Escrevo para procurar dizer/esconder o mundo, carregar a espessura das coisas na voz, concentrar as emoções na ponta da pena, ser capaz de dizer o eu, de dizer o outro e todas as emoções que o mundo suscita, dentro e fora de quem as vive. E sempre cavalgando a página com a frágil, titubeante e precária harmonia que as palavras permitem. Mas, mesmo quando o tão almejado equilíbrio poético se torna de difícil consecução, ou mesmo intangível, é também, e ainda com e nas palavras, que a incapacidade é anunciada.
Habituei-me a ver as luzes e as sombras de modo refratário, como se pelo buraco estreito do caleidoscópio, ou não fosse a simetria poética a síntese dos universos assimétricos [tantas vezes imperfeitos, espúrios caóticos…], essa mola que nos trasfega para um lugar melhor [na escrita e na vida].
Remissão ou castigo? Dispersão ou redenção? Pedra ou papel?... Talvez poema.


RV - Só reconhece a luz quem já viajou pelas sombras? (Cris de Souza)
JP - Cris, por ter um carinho especial pela literatura romântica, e por Rousseau em particular, talvez responda que só reconhece as sombras quem já viajou pela luz. Não, não é fatalismo do ser humano este percurso degenerescente que tantas vezes nos faz alimentar de reminiscências; é antes idiossincrasia. Afinal, a criação é um ato quase perfeito.


RV - A poesia transforma a dor em si? (Cris de Souza)
JP - Eu transformo-me com a dor da poesia – até porque mitiga a dor real, a dor vi[vi]da. Mas também renasço nos seus delírios, nos seus compassos, nos seus mundos [im]possíveis. Sinto, em cada sensação, que a poesia se transforma, também. Incluo, aqui, todos os contributos dos que a leem e que se deixam por ela tocar, tocando-a. E o poema reescreve-se a mãos quase infinitas.


RV - O que há nas paredes do seu quarto? (Cris de Souza)
JP - Cal e gesso encobertos pela cor da tinta. Histórias, afinal, estórias de dentro e de fora, de mim comigo e de mim com os outros que são muito mais do que paredes; são ramos entrelaçados na botânica do corpo. E às vezes respiram…


RV - Jorge, qual o vértice possível entre as linhas orientadoras do professor e do poeta? O professor é um poeta da relação humana mais generosa? E um poeta nos ensina a amarmos o quê acima de tudo, se é que ele nos ensina algo? (Marcantonio)
JP - Estou em crer que ensinar/aprender e sentir correspondem a três áreas vitais do ser humano. Somos construções, antes de mais, e a complexificação do raciocínio bem assim como o entendimento dos nossos sentimentos torna-nos mais conscientes do nosso papel neste processo interativo e plural. A prova disso é que antes mesmo de surgirem enquanto instituições sociais, já o homem ensinava e aprendia ao mesmo tempo que exprimia sensações.
Enquanto professor, não ensino; procuro explorar o que os alunos sabem, pensam e sentem para saberem mais, pensarem melhor e perceberem o que sentem. Não será isso a maior poesia?


RV - Você é um poeta que utiliza a blogosfera como veículo de divulgação dos seus escritos. Considerando isso, pergunto o que você acha das redes sociais (como o Facebook, por exemplo) para o mesmo fim? Você é refratário a elas de algum modo? O que pensa disso? (Marcantonio)
JP - Marcantónio, confesso não ser um grande fã das redes sociais. Tive, em tempos, Hi5, mas rapidamente me tornei uma ilha dado que me esquecia de que havia um conjunto de rotinas exigíveis à manutenção dessa ferramenta social: atualizar fotografias, moderar comentários, comentar… Acabou por seguir o destino inevitável: morrer. A verdade é que as redes sociais, apenas como lugar de aproximações e contactos interpessoais superficiais, não me seduzem. Nessa medida, sempre preferi o blogue que, tendo sido por mim criado mais tarde, acabou por corresponder por inteiro àquilo que pretendia: aproximar rostos e sensibilidades por via da palavra. É verdade que o blogue tem um alcance mais restrito; todos sabemos que é, de certa forma, mais limitador na propagação de uma mensagem/ideia/conteúdo; é provável que seja gerador de nichos. Todavia, entendo que quem segue um blogue mantém alguma afinidade com o seu objeto e raramente é um paraquedista acidental.
Sei que, presentemente, quase todos os bloguers articulam esta ferramenta digital com o Facebook ou o Twiteer, mas parece-me que na generalidade dos casos há uma perda expressiva dos blogues para as redes sociais, do ponto de vista da atenção e do cuidado de quem os gere. O que acaba por ser inevitável, dado que o caráter mais abrangente, não apenas do ponto de vista do alcance, mas também dos conteúdos a partilhar, reclama porventura mais tempo e dedicação do que o blogue. Vemos, pois, os Facebook atualizados regularmente e os blogues cada vez mais atolados em passagens esporádicas ou mesmo residuais por parte dos administradores.
No meu caso particular, já fui desafiado várias vezes a abrir uma conta no Facebook. Tenho resistido, porque não pretendo desvirtuar as poucas qualidades que o meu viagens de luz e sombra possa ter, até por ter receio de que jogar em dois tabuleiros me faça perder ambos os jogos. Não, não quero ganhar nada; apenas permanecer ligado àqueles que valorizam a minha escrita e poder fazer-me presente na escrita daqueles que gosto de ler. Mesmo que continue a ser apelidado de jurássico. 


RV - Jorgíssimo, um poema é, geralmente, o exercício solitário de quem "sofre" a poesia, mas você desafia este conceito experimentando parcerias. Como é isto de fazer um poema a quatro mãos com outro poeta? (Roberto Lima)
JP - Robertílimo, a escrita, e em particular a arte poética, é um processo eminentemente individual, ou não combinasse a apropriação de um conjunto de técnicas normativizadas e normalizadas com a intimidade e o crivo pessoal – cabendo aí todos os nomes que aprendemos a dizer, os que esquecemos e aqueles que, mesmo sem o sabermos, nos pré-existem e virão depois de nós. Assim nasce o estilo, a marca, a identidade.
Dito isto, e num primeiro olhar, poderemos pensar que a associação escrita poética/parceria pode ser desproporcionada ou até contranatura; todavia, numa abordagem mais funda, ela faz-me todo o sentido, por simultaneamente abrir e encerrar o desafio último de quem escreve: confrontar-se consigo e com os outros na pluralidade das sensações. O mais? Apenas composição.
Apenas uma nota adjacente: todos os textos que já escrevi em parceria fluíram com a espontaneidade que a poesia exige; nunca, em momento algum, o processo se tornou difícil, trem de rumo indefinido, impossibilidade, tarde sem música ou, mais recentemente, conto sem humor. Há, na origem, admito-o, grande sintonia com as pessoas com quem habitualmente arrisco este tipo de exercícios.


RV - Além de operário dos sentimentos como artesão da poesia, você é também professor. Em tempos de internet, videogames, ipods, telefonias, celulares e tantas outras "jetsonices",  fale-nos de sua luta diária tentando mostrar aos jovens que Camões é tão importante quanto Bill Gates, e que o legado de Saramago é tão grande quanto o de Steve Jobs... Os jovens portugueses de hoje se interessam por literatura? (Roberto Lima)
JP - Hoje temos os videojogos; na segunda metade do século XX foi a televisão; antes disso, a rádio. Mas antes mesmo da Revolução Tecnológica, havia apelos aos jovens, menos sofisticados é certo, mas que, à sua medida e no tempo, poderiam representar uma ameaça ao legado da literatura nas nossas vidas: uma bola de futebol, uma bicicleta, uma boneca de trapos ou um pião. 
Apesar de tudo, a literatura sobrevive e sobreviverá. E porquê? Porque se é verdade que o cérebro precisa de estímulos que lhe apaziguem todas as vertigens que experimenta, não será menos verdade que, cumulativamente e de modo transversal a todas essas experiências e sensações, há uma que não se resolve sem a literatura: a descoberta de si mesmo. E isso está sempre de um lado do silêncio e do outro lado da palavra. Estou em crer que na descoberta de nós mesmos entram todas as coisas, mesmo aquelas que à primeira vista possam parecer-lhe ameaças.
Na escola, e para os meninos, mais do que ser pescador de metáforas ou carpinteiro de sonetos ou ainda estivador de rimas, procuro deixar que cada um toque, à sua medida, o poder da palavra, convidando a sentir esse território quente, húmido, fecundo, “como se o topo da […] cabeça tivesse sido arrancado” [Emily Dickinson]. E se sentem, gostam. E se gostam, leem. E se leem, atrevem-se a escrever e a sentir. E entramos numa espiral mágica que engrandece: à literatura e a quem ousa com ela.

Participaram desta entrevista: Joelma Bittercourt, Dani Delias, Tânia Contreiras, Mirza Souza, Dadqae Amorim, Celso Mendes, Marcelo Novaes, Tuca Zamagna, Assis Freitas, Lelena Camargo,, Wildem Barreiro, Andréa Godoy, Cris de Souza, Marcantonio, Roberto Lima



6 comentários:

  1. Parece uma contradição (já que sou jornalista) mas eu nunca fui uma grande leitora de entrevistas. Não tinha muita paciência. De uns tempos para cá, mudei (obrigada, Taninha!). E mudei porque mudaram os entrevistados. Porque finalmente apareceram formas de vida inteligente, formas, não, bípedes! Bípedes talentosos, honestos, inquietos e inquietantes como esse Jorgíssimo bom de prosa e bom de poesia :)
    Beijoss

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  2. o jorgíssimo é bom de poesia e, como se lê acima, de prosa.
    ler sua entrevista é estar com ele, ali, em gaia, comendo presunto e queijo, vendo os encantos mais profundos da polônia (rs,) ganhando afagos de dona helena, misturando futebol com filosofia e abobrinhas... provando quatro portos distintos, que é o gosto mais gostoso da boa amizade.
    distinto também é o homem jorge pimenta, uma grande pessoa, um cidadão da prateleira de cima.

    para os devidos fins, atesto e dou fé.

    beijo grande do amigo e fã, esse seu

    roberto.

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  3. Agradecimentos ao entrevistado, de quem sou absurdamente fã, leitora voraz, a todos os queridíssimos entrevistadores - que sem eles, sem essa diversidade de olhares, nada acontecia -,e ao Tuca, pela arte sempre sensível e inteligente.
    Beijos,

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  4. Tânia, suas entrevistas sempre me encantam. O queridíssimo Jorge, respondeu com satisfação e positivamente. A abertura de Assis, um show. E à você pela iniciativa, meus parabéns. Conhecer melhor um poeta como Jorge Pimenta e saber seu pensamento autêntico, muito me alegrou. Mais ainda por saber que ele também não gosta de "redes sociais".

    Parabéns ao poeta aos entrevistadores, e à sua iniativa,Tânia!

    Beijos

    Mirze

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  5. A entrevista está espetacular, de uma inteligência extraordinária. Faltou uma pergunta minha aí no meio, mas ou melhor não faltou não. Ficou mais que maravilhosa a entrevista.
    LI e reli, achei que tinha comentado, mas o comentário não foi processado...ando com esse probleminha aqui - computador lento.

    GRande beijo e parabéns a todos e a ti Jorge, pelo ser poeta que és!

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  6. Jorge e administradores do blog,


    Estas entrevistas são boas como ilustrações/explicitações dos muitos modos de se pensar/fazer poesia, as várias motivações de tantos poetas, sempre diversas, sempre diversos. Mínimo ajuste pode ser entendido, também, como "sintonia fina", o que foi o caso na conversa com Jorge Pimenta.



    Abraços!

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