E foi numa dessas noites sem estrelas que ela voltou para me seduzir mais uma vez. No meu íntimo, eu sabia que ela voltaria. Da última vez que nos despedimos ela balbuciou umas palavras que eram o prenúncio de seu retorno, "Não te apegues a ninguém. Pessoas são perecíveis, de instintos voluptuosos e sentimentos voláteis". Eu sabia que tinha razão, e isso era o que mais me doía. E era isso que mais me apartava de Eros. Se fosse esse o seu intuito, ela teria conseguido o que queria. Esse conúbio era carmicamente repelido. E pra não me deixar só, fez questão de voltar. A placenta grotesca voltava para devorar o embrião abortado que eu era. Aquele líquido amniótico ácido. Só eu sabia que gosto amargo tinha. Só eu sabia o quanto corroera minhas entranhas. Seria um tipo de vil seiva extraída de plantas venenosas? Ademais, só me lembrei do divino Dante:
Estirpe fui dessa maligna planta,
Que o solo esteriliza à cristandade:
Se frutos bons produz, fato é que espanta.
E só colhia frutos podres. Proibidos? Talvez. Mas isso não importava. Proibidos ou não, ninguém os queria. Ninguém quer a polpa imunda, o sumo turvo. Mas pra mim, era estranhamente atraente e a meus olhos pareciam suculentos. Mas meu pecado foi outro. Meu pecado foi ter sido planta, não fruto. Eu não tive culpa do resultado. Ou pelo menos fingia pra me tranquilizar. Colhí então um deles. Só pra experimentar. As criaturas abissais que na maçã viviam deslizavam pelos meus dentes e me tiravam a voz. Eu precisava me fazer ouvir. Um grito gutural, de prazer e de agonia, um eco ancestral.. Mas isso nada mais é do que a dor e suas reminiscências (que os outros mortais chamam gozo). Ela estava a caminho. Voltava por uma estrada de terra, escura e tortuosa. Talvez viesse de uma gruta longínqua., minério perdido de uma estalactite imponente, um monumento esculpido pela terra em homenagem a Tanatos.
Por mais que eu quisesse me aproximar de Eros, nunca tive êxito. Pra mim ele era mais um desses semblantes desconhecidos e embaçados com que a gente se depara por aí afora, ou algum estranho numa fila que puxa conversa com você sobre o tempo. E você nem se importa se está chovendo ou fazendo sol. Você não liga pro tempo. Você é o tempo. Já Tanatos, não. Tanatos me era muito familiar. Tínhamos uma intimidade úmida, palpável, cálida,. E ela chegou, enfim, como havia previsto. Antes de começar a me seduzir, advertiu: "Prometo, esta é a última vez. Prepara-te". Com essas palavras tirou a manta que a envolvia. Os feixes de luz do luar que entravam por uma fresta na janela faziam como que uma renda, um colar nupcial para seus seios. Seios ávidos por leite. Seios ávidos por vida. O leite fermentou e a vida estava gasta; envolveu-me em seus braços, lânguida como costumava ser. Bem que ela me advertiu que era a última vez. Então partí numa só torrente. Num único orgasmo, uma única marcha fúnebre. Afinal como não havia uma morte múltipla, também não haveria de ter orgasmos múltiplos. Golfadas de luto prematuro me vinham à garganta. Despencava, então, a máscara. Finalmente ví sua verdadeira face, E ela me levou - a morte
Giulia Rosa, nasceu em Niterói(RJ) e escreveu esse conto aos 17 anos. Extraído de Sexo para iniciantes - Editora Faces - Berçário de Talentos.
Benditos 17 anos, heim? Um texto maduro e um talento, já, inquestionável. Como sempre, obrigada, Ci!
ResponderExcluirBeijos,
Encontrei esse livro perambulando pela Livraria Cultura.
ExcluirFoi um achado precioso, nele existe uma coletânea de contos, todos muito bons, com autores jovens e ainda quase
desconhecidos do grande público. O de Giulia é um dos mais curtos, e com uma grande capacidade de síntese para um tema tão profundo!
beijoss
Impressionante!
ResponderExcluirGrande texto!!
beijos
BF
Ci, essa menina é um gênio!
ResponderExcluirTambém sou da mesma opinião, Lê!
Excluirbeijoss
Não há rostos verdadeiros
ResponderExcluira menos que os queiramos conquistar
é verdade.
ExcluirOs rostos são moldados todos os dias, embora nem sempre
Excluirse mostrem, ou se disfarçam ou nem todos conseguimos percebê-los...!
Fantástico
ResponderExcluirPaulo, quero mais poemas seus aqui!!
ExcluirE então, Paulo, o que achou da "intimação" de Lelena?
ExcluirQUEREMOS MAIS POEMAS SEUS AQUI :)