A separação do céu e da terra
Dizem que houve um tempo no qual o céu e a terra eram uma coisa só. Oxalá vivia com a deusa Odudua dentro de uma grande cabaça. (Não custa advertir que Oxalá representa o céu e Odudua a terra).
Por maior que fosse a cabaça, no entanto, seus dois habitantes tinham motivos de sobra para queixar-se da falta de espaço. Na verdade, era tão estreita que Oxalá vivia na parte superior e Odudua na inferior.
Uma casa bem exígua e desconfortável, esta. Um lugar, de fato, muito incômodo para se viver. Na verdade - por que não dizer tudo? - não passava de um muquifo indigno. Pior, mil vezes pior, do que morar numa maloca ou numa palafita. Porque - misericórdia! - não cabia mais nada alí dentro senão as duas pobres divindades.
Ambos, porém, não tendo outro lugar para ir, continuaram a viver na cabaça estreita por muito tempo.
Dito isso, é preciso saber agora que Oxalá e Odudua possuíam sete anéis. E que sempre, antes de dormir, colocavam nos dedos os tais anéis. E que Oxalá, por dormir sempre em cima, ficava com quatro anéis. E que Odudua, por dormir sempre embaixo, ficava com apenas três. E que era assim toda santa noite.
Ora, tanto foi o negócio que um dia Odudua resolveu questionar o tal arranjo.
- Oxalá, por que, além de ficar por cima, você fica de posse de quatro anéis e eu de apenas três? - disse ela, altas horas da noite (se tal coisa existia)
- É assim e está acabado. Dorme, Odudua, dorme.
Mas Odudua não queria mais dormir.
- Vamos, explique-se! - disse ela, querendo ir fundo na questão.
- Sossega, criatura! - disse Oxalá, virando abruptamente de lado.
Odudua, a quem aquelas virações de lado haviam já enchido as medidas, não se deu por vencida.
- Vamos! Por que fico só com três? - gritou ela, sedenta já por um perequê na madrugada.
- Inferno! - gritou o deus, afinal. - Porque só há sete, cabeça de porongo! Alguém tem que ficar sempre com um a mais!
- E por que, sr. Oxalá, este alguém tem de ser sempre você?
Numa demonstração de extraordinário autocontrole, o deus preferiu guardar silêncio absoluto.
Um silêncio absolutamente inútil.
- Vamos, passe-me um dos anéis! - recomeçou ela - Esta noite eu dormirei com quatro!
- Ah, já entendí, quer bancar o superior, não é? O senhor dos anéis!
- Por que não vai dar uma voltinha lá fora, hein?
- Aliás, está na hora, também, de discutirmos esse negócio de você dormir sempre por cima! - disse a deusa, disposta a uma verdadeira revolução.
- Como é que é? - disse o deus, lançando um olhar esgazeado para baixo.
- É isso mesmo! Sempre por cima e carregado de anéis!
- Já se deu conta do que está propondo? - exclamou ele. - A total subversão, eis o que é!
Odudua, porém, surda a tudo, prosseguiu impertubável.
- Desça já.
- O que disse?!
- Desça já e dê-me os seus anéis. A partir de hoja, noite sim, noite não, dormirei em cima com os quatro anéis. Vamos nos alternar dentro desta maldita cabaça!
- Oh, parabéns! Blasfêmias agora?
- É sim, o que é que tem? Maldita cabaça!
Então, começou de verdade, o vuvu. Odudua, num golpe tão feroz quanto imprevisto, deu um puxão no manto branco do deus(Oxalá era também chamado de Obatalá)
- Louca! Quer rasgar o meu manto sagrado?
- Oh, tadinho, o mantinho do rei! - disse ela, dando um novo puxão que rasgou-o de cima a baixo.
Aquilo foi demais. Oxalá, perdendo o resto da compostura, também desceu literalmente a mão e acertou o que pode da deusa;
- Miserável! - disse ela.
- Encrenqueira! - disse ele.
Não existe registro algum de quanto tempo durou esta divina refrega. Tudo quanto sabemos é que a certa altura a velha cabaça. por força da tremenda batalha que se travava no seu interior, começou a rachar-se em duas. Como um ovo que se parte, as duas partes do porongo se separaram miseravelmente.
- Oxalá querido! - disse a pobre deusa, coberta de equimoses, a estender a mão para o deus que subia vertiginosamente dentro da sua meia-cabaça.
- Odudua querida! - disse o pobre deus, coberto de arranhões, a estender a mão para a deusa, que caía vertiginosamente dentro da sua meia-cabaça.
Em vão: Oxalá foi parar no mais alto firmamento, enquanto Odudua tombou no mais profundo abismo.
E foi assim que, por causa de uns míseros anéis, Céu e Terra se separaram para todo o sempre.
Extraído de As melhores histórias da Mitologia Africana, de
A. S. Franchini/ Carmen Seganfredo
A. S. Franchini/ Carmen Seganfredo
Adorável poder ler esse texto.
ResponderExcluirObrigada por o partilhares connosco.
Bj
BlueShell, bom te ver por aqui.
ResponderExcluirSeja bem-vinda(o) e obrigada pela visita;
bj
Adorei, muito com sentido!**
ResponderExcluirSerão, então, as nuvens um sorriso ou lágrimas ? :)
ResponderExcluirbeijoss