sábado, 13 de agosto de 2011
LEGADOS DE IANELLI, matéria escrita para o Jornal ZERO HORA, publicada em 13 de agosto de 2011
Contemplar a obra de Arcângelo Ianelli equivale a passear pelos melhores caminhos da arte brasileira guiado por quem sempre ocupará privilegiado assento entre os grandes mestres da pintura e da escultura. Ianelli trilhou uma carreira visivelmente gradativa, construiu uma obra suo tempore, sobretudo coerente e plasmada no profundo conhecimento das cores que soube distribuir sobre telas de rara plasticidade. É, em resumo, um artista digno de ser exposto nos maiores museus do mundo. Estes, muitas vezes, apresentam espaços exíguos, o que os obriga a formar acervos limitados, e de forma geral dispõem de verbas minguadas, que os impedem de adquirir novas obras. Mas estas circunstâncias, considerando Arcângelo Ianelli, não justificam que se refutem obras-primas de artistas de sua densidade. No ano passado, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), do qual Ianelli foi estreito colaborador durante sua vida, e de cujo Conselho participou intensamente, rejeitou 14 das 16 obras deixadas em testamento pelo artista, falecido em 2009. A alegação do MAM foi de que eram redundantes em relação a outras do mesmo Ianelli já existentes no acervo da entidade. À polêmica, amplamente discutida pela imprensa do centro do país, estarrecidos com a decisão do MAM, juntaram-se vozes respeitáveis como as de Ferreira Gullar, Fábio Magalhães e Emanoel Araújo. Também ao MARGS, que não possui nenhum exemplar de sua obra, Ianelli legou 15 expressivos trabalhos, dentre os quais duas primorosas marinhas pintadas a óleo, datadas de 1958, quando o artista encontra o esplendor de sua preciosa fase figurativa. Estes quadros estão catalogados no livro IANELLI – Os Caminhos da Figuração, editado pela FAAP por ocasião de uma retrospectiva do artista, ocorrida no Museu da Arte Brasileira, em 2004. Outra tela doada ao MARGS (óleo nas dimensões 2,00mx2,50m), pertence à fase mais conhecida por Vibrações, na qual o artista coroa sua extensa carreira, esbanjando absoluto domínio da luz e dos efeitos de transparência. As demais obras são sete pastéis sobre papel, quatro gravuras e uma escultura, todas elas igualmente importantes. Trata-se, em poucas palavras, de uma seleção ampla e expressiva da trajetória de Ianelli, capaz de sozinha sustentar uma exposição gloriosa. Entretanto, estas doações, ofertadas há mais de um ano e meio, ainda não participam do acervo do MARGS pela falta de recursos da entidade para o pagamento de um imposto de transmissão de valor pouco inferior a R$ 8.000,00. Este caso, paradoxal por sua natureza, suscita uma reflexão sobre o descaso dos governos para com a Cultura em geral. Num Estado como o nosso, em que o orçamento destinado à área mal alcança meio por cento do geral, torna-se difícil chancelar a seriedade da gestão pública que não valoriza uma generosa doação de bens avaliados em torno de meio milhão de reais e que não é acolhida por ser indisponível irrisória cifra para o pagamento de uma simples taxa. O fato reproduz um pouco a história da administração pública do Brasil, onde é comum acontecer que se percam projetos e oportunidades por “decorrência de prazo”, isto é, um eufemismo para exprimir inépcia. As obras de Ianelli foram indiscutivelmente aceitas pelo núcleo de acervo do MARGS, ao contrário do que se passou no MAM de São Paulo. Mas remanesce, fruto de uma política equivocada do governo em relação à história de um museu com mais de meio século de existência, uma pendência tão prosaica quanto inaceitável. Alguma solução poderia vir da Associação de Amigos do MARGS, suporte financeiro do museu, entidade que há alguns anos, através de um organizado trabalho junto a mecenatos, logrou adquirir um pequeno acervo em número de peças, mas rico em conteúdo, no qual pontificava uma estupenda tela de Guignard. Cabe à Associação de Amigos procurar recursos para cumprir metas do cotidiano - e ressaltemos que esta não é uma meta do cotidiano, mas uma ação que, a um custo simbólico, pode significar a aquisição da década para o acervo do maior e mais importante museu de arte do Rio Grande do Sul. O risco que corre o MARGS em acabar não recebendo as obras de Ianelli é maior do que se possa imaginar, porquanto a família do artista aguarda o pagamento do imposto de transmissão para o efetivo encerramento do inventário. Até quando poderão os doadores, por interesse próprio ou por imposições legais, manter em aberto este processo ? A decorrer algum prazo retardatário além do admissível, estas obras poderiam ser oferecidas a outros museus nacionais e estrangeiros que as receberiam com festas de foguetório, como o fizeram o MASP, a Pinacoteca e o Museu da Arte Brasileira, todos de São Paulo. Raramente ocorre a oportunidade de um artista do quilate de Arcangelo Ianelli legar grupos de obras a entidades, e menos ainda seus testamenteiros insistirem em levar tal missão ao cabo. Estas considerações terminam por evocar outra, de caráter institucional. Museus no mundo inteiro cobram ingressos para a visitação, muitas vezes estabelecendo diferentes classes de tarifas de acordo com a importância e o número de exposições exibidas. A França, onde os museus nacionais são congregados por uma só entidade, a Réunion des Musées Nationaux, isso é tratado assim na integralidade. No Reino Unido, excepcionalmente, há algumas políticas de gratuidade, mesmo em casas importantes como a Tate Britain. Mas a opção do Estado inglês em subsidiar estas visitas é compatível com a devida contrapartida financeira por ele alcançada aos museus que não cobram ingressos. Aqui, diferentemente, o Estado não se interessa por dotar museus de verbas compatíveis com um funcionamento digno. Não é difícil compreender este tabu da não cobrança. Ele está preso a um antigo conceito de Estado paternalista em que prevalece a noção de que a arte é ainda-e-para-sempre incipiente, e que cobrar ingressos de um público específico significaria uma afronta a toda luia sociedade. Uma grande falácia. No caso da doação Ianelli, por exemplo, o imposto de transmissão já há muito tempo teria sido pago com recursos diretos de ingressos. A cobrança, mesmo que simbólica, e excetuados alguns casos como os de estudantes e idosos, por exemplo, valoriza os museus ao mesmo tempo em que move a economia da cultura: para os museus, mais acervo, mais publicações, melhores condições disponíveis ao usuário e, por consequência, maior visitação; para os artistas, maior reconhecimento de seu fazer; para os marchands, melhores vendas e mais compras aos que produzem arte. É um ciclo saudável e compatível com a realidade de um país como o nosso, cujo governo se jacta de enfrentar crises econômicas com galhardia e incentiva o consumo a rodo. Que consumamos cultura, pois, e que possamos perceber o baixo custo para o enriquecimento da alma. Ars longa, vita brevis.
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A falta de sensibilidade para com a arte e para o seu legado é um dos maiores problemas da sociedade moderna. Estão todos, quase todos, muito mecanizados e insensíveis além de estúpidos. Essa situação é absurda, tragicômica. E não entendo também por que o MARGS não cobra nenhuma taxa de visitação.
ResponderExcluirBeijos.
BF
Muito bom e parabéns, Paulo, por divulgar esses absurdos que ocorrem ainda no Brasil de nossos dias. O imposto de transmissão causa mortis é estadual e o MARGS é do estado do RS. O correto seria isentar do pagamento desse imposto, mas nada é tão simples neste pais. Também acho que o MARGS deveria cobrar uma taxa de visitação, ainda que simbólica. Forte abraço.
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