Uma jovem estudante de Direito, desalentada com a vitória da petista Dilma Rousseff, ganhou fama ao clamar no Twitter o afogamento de nordestinos em benefício de São Paulo. O ódio da moça brotou em meio a uma campanha difamatória que irrigou expedientes eleitoreiros. Se na TV o marketing cuidou de dar boa aparência aos candidatos, na internet a coisa foi feia. Levante a mão quem não recebeu um único spam desqualificando os votos da população assistida pelo Bolsa Família. Sobre tal corrente, a psicanalista Maria Rita Kehl disse o que tinha de ser dito – e foi punida por isso. Assim estávamos na campanha…
A xenofobia da estudante paulista, no entanto, não é retrato das tensões do momento. É uma fotografia embolorada, guardada num fundo de armário, agora trazida à tona. Quem triscou fogo nos spams sabia que o ódio fermentava. Bastava uma faísca. Se tiver estômago, pode ler uma coletânea de tweets odientos — e odiosos — no Diga não à Xenofobia. A menina não está só.
A maioria dessas mensagens parte de jovens de mais ou menos 25 anos. O que leva a supor que muitos deem vazão a preconceitos ruminados à hora do jantar em família, da festinha do sobrinho ou do churrasco da faculdade. Está aí boa parte da festejada geração da internet, que confunde vida real com a vida em rede, mas se sente imune às consequências de atos online. Mostram os dentes no Twitter como se estivessem a salvo da luz do dia, como se não fosse dar nada. Mas deu, mano.
A moça que gostaria de afogar um nordestino em São Paulo acabou ela mesma por submergir. Deletou seu perfil ante a repercussão do caso, que lhe rendeu a protocolação de uma notícia-crime pela OAB de Pernambuco no Ministério Público Federal em São Paulo. O escritório de advocacia onde estagiava apressou-se em dizer que ela não despacha mais por lá. O caso foi parar até nas páginas do britânico Telegraph. Vários outros “bacanas” seguiram os passos da menina e desapareceram do Twitter. Talvez arrependidos do um ato impensado, da ausência completa de reflexão ou, mais provável, da ameaça de punição legal. Quem sabe ainda há tempo para deixar as trevas.
Ironicamente, o aguardado uso da internet nas eleições ajudou a liberar o que há de mais retrógrado entre nós (embora o poder transformador da rede esteja muito além disso). Parecemos recuar 50 anos em relação a direitos civis. Houve até o retorno de mortos-vivos, grupos pouco representativos e de triste memória. Não bastasse o proselitismo religioso, a ação das militâncias, oficiais e oficiosas, a campanha na internet descambou para baixaria geral. Conhecido o resultado da eleição presidencial, viria o pior: o insulto aos eleitores, desclassificando-os.
Enfim, é uma questão de classe; não de compostura. Uma parte dos jovens que se julgam classe A levantou-se da sala de jantar para reinstaurar a separação da copa e da cozinha, sem se dar conta de que a divisão dos cômodos já não é tão sólida. O que move tanto ódio? Passionalidade do clima eleitoral não é o suficiente.
Nunca na história deste país (tá, essa foi só para provocar) se falou tanto em classes C e D e E. Estão todos os dias na imprensa; chamam atenção pelo crescente poder de consumo. E é a isto que a noção de classes parece se resumir hoje: consumo. Talvez esteja aí a raiva dessa moçada, muito mais identificada com bens do que com valores.
Identificar-se por aquilo que se consome pressupõe um sentimento de exclusividade. “Eu tô dentro e eles, fora”. Uma concepção de vida alimentada e também confrontada pela massificação do consumo. A tensão desponta quando “eles”, os esfarrapados, começam a ter o que “eu” tenho. A exclusividade mingua, e o povão chega chegando, sentando ao seu lado no avião. É preciso descolar novos meios para diferenciar uns dos outros. A desqualificação é um deles.
Um dos legados desta eleição embalada por baixarias é uma tensão que parece escapar da acomodação sobre a imagem construída pelo mito fundador nacional. Descobrimos um pensamento ultra-conservador no Brasil, e ele pôs a cabeça para fora. Seria um exagero, no entanto, dizer que o país está dividido. Mas é igualmente um equívoco considerar que a identidade nacional sai ilesa – por definição, ela é lacunar, ao pressupor a relação com o outro. O que queremos de nós mesmos?
Mas na cabeça dessa moçada raivosa, nada disso seria necessário, e a harmonia se restabeleceria desde que todos estivessem nos lugares “certos”. Assim, estão prontos para experimentar o que consideram desenvolvimento e mal esperam a ocasião para pôr à mesa de alguma congregação do Tea Party uma iguaria nacional: uma saborosa broa de milho feita pela mãos da preta dócil que serve a casa.
Excelentes as variáveis que envolvem o enauseante tema que trouxeste nesse post.
ResponderExcluirLogo que soube do caso, na segunda-feira, o primeiro pensamento que me ocorreu foi a lembrança do caso do índio Pataxó, incendiado vivo por adolescentes da mesma faixa estária desta menina. Sim, adolescentes. A adolescência permeia a faixa dos vinte e poucos, vinte e muitos anos.
Enfim, da lembrança do caso emblemático do índio Pataxó imediantamente pensei que gradativamente começamos a presenciar dia a dia os efeitos da geração que chamo de expelida, ou não-parida.
Há uma massa de jovens fruto de matarnidade/paternidade que somente se fez com o fim protocolar de cumprir o roteiro social das relações parentais. Sim, precisa-se ter filhos, independentemente dos novos modelos de vida que tenhamos hoje.
Sim, é necessário, egoistamente, expelir rebentos para se dizer completos, ou melhor, ser tido como ajustados socialmente pouco importanto o custo disto.
Pois bem. O que observo já há vários anos é justamente a forma como estão sendo depositados no mundo os tais rebentos expelidos.
Não podemos ter como filhos, para estes pais, riaturas que não recebem mínima base de valores. E a questão é singela. Não há tempo. Os pais não dispõem mais de tempo. Essa ausência é inerente à socidade atual.
Não teria nada de errado com o ritmo que o mundo capitalista global impõs se não fosse a dificuldade das gerações que hoje têm 40, 50 anos de terem aberto mão da maternidade/paternidade, ou da carreira.
Parece fatalismo. Mas não. O resulta está aí. A maioria dos pais não consegue conjugar a carreira com a vigilância que a maternidade/paternidade carecem. Vigiláncia de atos, vigilância para consigo próprios em passar valores éticos aos filhos. Algum limite ao menos. Mas não. Há um grupo de fihos que não recebem minimamente quaisquer valores.
E vemos hoje o resultado: onipotência.
A onipotência dos tais rebentos expelidos, conflitam com o bom senso ético de parte da sociedade é que filho parido.
Filhos paridos são alimentados de amor, valores, limites, atenção - independente do numero de horas que os pais trabalhem.
Jà fFilhos expelidos, estes são alimentados do excesso de concessão. E não se leia disso concessões materiais apenas. Não são elas que contam. A concessão está em jamais receberem um não. Porque dizer não dá trabalho, dizer não desfoca pais de seus objetivos pessoais. Dizer não cansa, pois gera atrito, desgastes, e quem tem vontade de chegar em casa e ainda despender energia em situações desgastantes, ou passar o final de semana adminstrando os incontáveis pedidos de filhos?
É natural a omissão desses pais se vista sob esse ponto de vista, pois dá muito trabalho conjugar carreira com edução de filhos.
Sou condesdente quando olho sob esse aspecto. Condescendente ocm esses pais. Entretanto, minha condescendência cessa no exato momento em que essa tal omissão destes pais fere minha condição de cidadã, e lesa meus direitos quando estes tais filhos expelidos egoísticamente, cometem crimes de ordem social!
Que este caso seja empregado por toda a sociedade como referência, como marco de um movimento de repulsa a quaisquer atos discriminatórios. E coloquem a sociedade a repensar seus papeis de pais, chamando para si a responsabilidade dos efeitos das relações parentais meramente protocolares.
Quem opta por ter filhos, que se façam pais.
Cirandeira,
ResponderExcluirTexto absolutamente lúcido você nos traz.
Acredito firmemente que o preconceito seja a pior característica de um ser humano. A pior e a mais lamentável. O dia em que o preconceito for erradicado (talvez esse dia chegue, não sei), teremos uma sociedade muito próxima do ideal.
Beijos
Carla
Maria Janice, o teu texto veio complementar o
ResponderExcluirde Michel Blanco, muito bom.
Obrigada pela contribuição.
Um abraço
É verdade, Carla, mas a estrada ainda é muito
ResponderExcluirlonga. Acho que teremos de ir deixando pelo caminho um monte de outras coisas que alimentam o preconceito....Temos que estar sempre caminhando!
Beijos