domingo, 28 de novembro de 2010

Edgar Allan Poe





A honestidade artística



Ultimamente foram achados documentos nos quais se constata que o trabalho literário de Poe era pago à razão de cinquenta cêntimos de dólar a página impressa. Se seus contos menos conhecidos tinham, em média, quinze páginas, e os mais famosos apenas dez ou doze, a média geral era de seis dólares por conto, isto é, quinze pesos.*
Um dos mais extraordinários gênios que o mundo conheceu, quase sem ascendentes e sem sucessor algum - só e isolado na história literária como um diamante -, este homem de inteligência profunda até a vertigem, vivia, comia, vestia e mantinha suas relações interpessoais à razão de um peso por cada página que escrevesse.
O caso não é único. De Homero a Leonhard Frank, passando por Beethoven (quando vendia sua quinta sinfonia por vinte e cinco pesos), o gênio adquire seus privilégios em detrimento do bem-estar. Se por um lado não causa espécie tal fenômeno, que de certo modo é biológico, surpreende, por outro, a honestidade de Poe, que limitou seus grandes contos a doze páginas, ganhando com eles não mais do que seis pesos, quando lhe teria sido fácil aumentá-los para vinte ou cem páginas.
Admita-se que, com seis pesos, matava a fome de seis dias, e que nas noites correspondentes pudesse dormir num colchão de lã. Com Poe tudo é possível. O que não se admite é que essa renda também lhe fosse suficiente para beber o que bebia.
São conhecidas as fraquezas do escritor. Não houve paraíso artificial que não visitasse nem serpente que não lhe devolvesse fielmente as visitas na forma de delirium tremens. Fome de comer e sede de álcool, estroinices desatinadas e o mais que se ignora dessa extravagante criatura, tudo devia ser fatal e mesquinhamente coberto pelos seis pesos de cada conto.
Se para Poe a necessidade de álcool, éter, ópio, era tão orgânica quanto se supõe, poucas torturas teriam sido iguais àquelas que sofria quando a escassez de meios lhe permitia comer e beber, mas não embriagar-se. Nessas horas teria dado uma fortuna, se a tivesse, por uma gota de álcool. Admire-se, por isso, a honestidade mais do que heróica, o pudor mais do que divino do escritor quando, escrevendo um conto, terminava-o no momento preciso, na décima página, ainda que transtornado pela ânsia de beber.
Vontade, confiança, decoro, tudo no grande contista naufragou, menos a honradez artística. Aumentando um pouco aqueles contos de excepcional sobriedade poderia ter alimentado folgadamente a besta do álcool. Ninguém como ele teria facilidade para tanto. Não o fez. Hoje, no entanto - sem pressões ou necessidades, e se as temos basta encompridar um conto, que de conto só tem o nome -, nos lembramos de Poe mais pelas bebedeiras do que pela honestidade.



Extraído de "Heroísmos (Biografias Exemplares)", do escritor uruguaio Horácio Quiroga (1878-1937) - Tradução de Sergio Faraco


* Moeda argentina no câmbio de 1927.

2 comentários:

  1. Ao ler o post, veio-me de imediato à memória este poema de Miguel Torga:

    De seguro,
    Posso apenas dizer que havia um muro
    E que foi contra ele que arremeti
    A vida inteira.
    Não, nunca o contornei.
    Nunca tentei
    Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
    A honra era lutar
    Sem esperança de vencer.
    E lutei ferozmente noite e dia,
    Apesar de saber
    Que quanto mais lutava mais perdia
    E mais funda sentia
    A dor de me perder.

    Beijo :)

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  2. Muito boa a tua lembrança associativa, Agostinho.
    Obrigada por nos deixar essa pérola de Miguel Torga!, esse excelente poeta.

    beijo :)

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