terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O amor acaba


Robert Doisneau



O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumí­nio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridí­cula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às proví­ncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptí­vel no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasí­lia o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Paulo Mendes Campos, em Crônicas liricas e existenciais.  ( Belo Horizonte, 1922-1991)

10 comentários:

  1. Pode acaber como por um encanto.
    Em lágrima é geral mente o fim do amor.
    Belo texto!
    beijos!!

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    1. E pode recomeçar, como tudo na vida; a gente chora e a gente ri :))

      beijos

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    2. como numa cantiga de geraldinho.
      azevedo.

      beijão

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    3. "... a gente ri, a gente chora/ fazendo a noite parecer um dia/ depois vai acordar cantando/ pra fazer e acontecer verdades e mentiras..."
      É isso aí, Roberto!

      beijão

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  2. Amo esse texto. Tenho o livro, cujo título é o mesmo dessa crônica.Paulo sabia da vida. bons ventos!

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  3. Ci


    Pois acho que o amor não acaba! O amor se arranha, se quebra, vai para o hospital, entra em coma, mas não morre. O amor fica quieto porque tem instinto, o amor fica no banho Maria porque ferve fácil, o amor sai de férias porque precisa reformar a casa, o amor mete os pés pelas mãos ou o contrário porque é dado a ataques, o amor brinca e briga, o amor volta a infância, o amor atinge a maturidade, o amor tenta saltar do barco, tenta ser um rato, um botão perdido, mas o amor não acaba mesmo que se finja de morto!
    Beijoss

    Lê mulher rendada :)

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    1. Minha querida amiga,mulher rendada :), o amor, o amor, quem sou eu para falar sobre esse sentimento tão subjetivo, ora tão profundo ora tão à flor da pele, às vezes duradouro, noutras tão fugaz! Às vezes chego a pensar que é apenas um sonho, uma quimera. Quem sabe o amor seja como a vida, ou a própria vida, e nesse sentido
      não morre, está sempre se renovando, recomeçando, como diz o Paulo Mendes Campos nesta crônica tão bonita, tão cheia de facetas como todo ser humano, como a própria vida!?

      beijosss

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