quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Céu de Ametista





Minhas mangas estão molhadas. Minha
calça, suja de sangue. Há sangue na minha calça, na
coxa direita. E um céu de ametista paira sobre
minha cabeça.

Não sei se esse sangue é meu ou mau.
Se já está seco. Não sei se menstruei
sem saber, e se ele me jorra perna
abaixo.

Sei que hoje vi uma mancha na
parede da sala de uma casa
que procurei pra alugar. E
que essa mancha, agora, me
faz corar de medo. Porque
parecida com a da minha
calça.

No mesmo formato de duas
cruzes superpostas. É melhor arrumar
as malas e sair de casa, antes
que a polícia me persiga, a mim e à
minha família. E a todos,
sob esse céu de ametista.

A mancha, a calça, tudo dá na
vista.

Certamente serei acusada de ter
conduzido um homem até sua
morte. Encapuzada. Pra local
ignorado.
Eu sei como são as
coisas.

Eu sei das coisas
todas e das trevas.

Dirão que eu convidei meu pai e
minha mãe pra assistir a tudo.
Por requinte de crueldade. E
eles confessarão tudo, sob
tortura e juramento.

Direi que esqueci, mesmo sob
tortura, eu que sou mais dura
e firme e reta em minha
postura.

E também sei ser discreta.

Direi que esqueci e que, se assim o fiz,
não foi por maldade. Mas por instinto.
Cego.

Na vida há coisas das quais não
lembramos. É normal. Como não saber
de onde vem o sangue que nos suja a calça
ou o avental.

De qualquer forma, acho que já estão
falando de mim na televisão e no jornal.
Acho que estão dizendo [e devem estar
dizendo, pressinto, como é certo que
abaixo do céu só existe labirinto],
que fui eu que fugi com o dinheiro
do Banco
Central.

Mas eu não sei. Como não sei se esse
molhado todo em mim mesma é sangue ou
mijo ou suor frio. Mas sei que o sangue na minha
calça já está seco. Pelos meus cálculos, devo ter
cometido o crime há duas horas e meia.
O tempo que demoro pra expelir minhas
pedras dos rins, pela uretra
estreita.

Eu me lembro das dores do parto que
tive com meus dois, três ou quatro filhos.
Não me lembro quantos. Mas me lembro
de quando me acusaram pelo envenenamento
de seis meninas num
país vizinho, e de
atravessar a fronteira no lombo de
um carneiro, com máscara
ninja.

Eu me lembro de quando disseram também
que eu coloquei aquelas substâncias químicas
horrorosas deletérias venenosas nas pílulas das
mulheres e nas balas das crianças.

Eu me lembro
de quando fizeram campanha contra mim,
acusando-me de lésbica promíscua anti-
feminina anti-feminista, em todas as
esquinas.

Eu me lembro de quando marcaram hora
para o evento, a partir do Big Ben de Londres.
Sei também que dizem que tenho complexo de
grandeza. Sei que Big Ben além de relógio em
Londres é nome da boate onde dizem que me
escondo de ninguém.






Acho que é por isso que eu não a
encontro mais: a hora. Devem tê-la
explodido durante a noite, ou algo
parecido. Devem ter mexido nas
instalações elétricas da cidade pra
ser claro onde devia ser escuro,
e também o contrário.

Tudo para que eu me confunda e não
saiba dizer direito o dia a hora o local
da vala cova ou sepultura.

Eu conheço o esforço humano pra me
pegar no pulo. Ou no colo. Eu conheço
as manhas humanas pra me pegar de quatro,
eu conheço as taras e os engenhos [uns oitocentos
e tantos] pra me fazer cair em contradição num
depoimento.

Podem ter plantado esse sangue na
minha coxa como colocaram aqueles
papelotes na minha bolsa no mês passado.

Eu sei que as pessoas querem achar um
bom motivo pra me encarcerar. Talvez
porque não me lembre de quem matei:
se pai mãe tio ou motorista de alguém
que nem sei.

Talvez porque não saiba se esse sangue é
meu ou de uma cabra que sacrifiquei no
altar a Zeus.

Não sei se me veio de animal de
pagão ou do sacrifício de Santa
Perpétua no Coliseu de Roma
Antiga.

Não sei se eu fiz parte da armadilha a
ela ou do armistício. Interrogo a este
céu de ametista e ele só me responde
de vez em quando.

E conta das coisas que contra mim o
mundo anda
tramando.

Podem ter plantado esse sangue.
Não sei se é de gente animal ou
de meu nariz mal assoado,
afinal.

(Marcelo Novaes)

15 comentários:

  1. Marcelo Novaes...Descobrir o poeta tem sido muito bom!

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  2. Respostas
    1. Marcelo, esse teu conto-poema é mesmo muito
      instigante: cheio de memórias deletérias,
      de atos aparentemente não realizados, de
      impressões que se tornam reais, de simulacros de pessoas, e vamos seguindo-o
      curiosamente cheio de expectativas!
      Estás me parecendo "un enfant terrible", ça
      va?

      um beijo

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. rsrsrs...pois é, mas as vezes o tiro sai pela culatra e o sangue afinal derramou sozinho em si mesmo. Canseira da perseguição...

    Quem sabe?

    Abraço

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  4. Parabéns pelo poema, intenso e bastante expressivo. bjo

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  5. Conheci esse poema pelas pegadas dos primeiros versos.
    Já ia dizer: Tânia, assim você dá na vista que decorou Marcelo Novaes.
    Era o próprio. Ainda bem que não esqueci.

    Parabéns, Marcelo! Seus poemas são inconfundíveis e esse está divino!

    Beijos

    Mirze

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  6. Muito emocionante e profundo. Não conhecia Marcelo Novais! Vou me inteirar sobre ele...

    Beijão

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  7. Não sei se este sangue é meu ou mau.
    Mesmo sob tortura...
    direi que esqueci...
    serei discreta.
    ...onde dizem que me escondo de ninguém.
    Como é certo que abaixo do céu só existe labirinto.

    Bah!Só quem conhece as manhas humanas,consegue contar dos labirintos.
    Um beijo,Marcelo,grande conhecedor...!

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. Na íntegra assino a sinopse da Buko;pegou o foco :)
    Só quem conhece consegue contar.............
    Grde Marcelo grde conhecedor.............Vlww

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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