terça-feira, 3 de julho de 2012

O castelo Invencível


Castelo invencível
Gustavo Melo Czekster

Que a minha pele seja concreto. Que os músculos sejam tijolos. Que as veias e artérias se tornem muros. Que eu seja o castelo invencível. Nunca entendi as palavras do técnico na oração que antecede as lutas. Nunca entendi por que eu deveria ser o castelo, pois prédios não batem em ninguém. Sentado no corner, olho as vassouras que passam de um lado para o outro do ringue, limpando e espalhando os borrifos que se encaminham à coagulação. Dizem que é feita de som e fúria, mas estão errados, a vida é feita de socos e sangue, muito sangue. O esfregão acaba de passar sobre a mancha vermelha que espirrou do meu nariz quando ele acertou um cruzado de esquerdo traiçoeiro; este soco doeu. Mas nem tanto quanto aquele que arrancou sangue do supercílio direito que recém tinha sido fechado pelo médico. Levante a cabeça, eles gritavam na beira do ringue, por cima do rumor da multidão, mas levantar a cabeça é dolorido, o pescoço se recusa a atender a ordem, é mais confortável deixa-la atrás da proteção instável das luvas.
Levei uma sova. Em que round estamos? Nove, passa uma moça rebolando no meio da bruma, deixando pegadas no sangue. Estou sendo sovado há oito rounds, longos vinte e quatro minutos. Sobrevivi até agora. Incrível. É complicado explicar, mas o Tempo passa diferente quando estamos atordoados. Ele às vezes corre, às vezes anda devagar. Em cima do ringue de boxe, o Tempo não se mete, prefere sentar e assistir a luta. O intervalo de algumas vidas passou dentro dos vinte e quatro minutos. Todas as pessoas que conheço, vivas e mortas, vieram visitar meus devaneios e atormentar minhas memórias com o que deixei de fazer ou o que fiz errado. Ninguém apareceu para me elogiar, mesmo no delírio só existem críticos. Enquanto o inimigo dança e me espeta com as bolas vermelhas em que se transformaram suas mãos, eu sobrevivo e espero. Pois ele vai cansar. Todos cansam. Para vencer, é necessário descer ao inferno e depois subir. Nem todos descem; a maioria prefere ficar no conforto do purgatório, poucos são aqueles que se atrevem a encarar os piores demônios olho no olho. É o que me diferencia. Cada soco que eu levo, cada sangue que espirra da minha cara, cada gota de suor que escorre, é uma pequena morte que enfrento. E, quando chegar ao fim do suplício e a Morte verdadeira estiver esperando, eu levantarei. Diante dos olhos vazios da caveira, rindo, me erguerei. O homem que cai não é o mesmo homem que levanta. Em alguma ocasião, talvez, eu não consiga mais levantar e, neste dia, ela vai se saciar com a minha alma, vai obter a sua vingança pelos momentos protelados. Mas, hoje, não é este dia. Ainda não.
Do outro lado do ringue, o inimigo me olha. Está um pouco melhor que eu. Posso sentir a sua surpresa, quase palpável no clamor da multidão invisível. Não consegue compreender como ainda permaneço de pé, o motivo pelo qual estou lutando. Se não estivéssemos com os protetores nos dentes, eu diria: ainda estou lutando porque você não caiu. Simples assim. Enquanto você estiver de pé, eu estarei também; a cada soco seu que encontrar como alvo final o meu corpo, você lembrará que ainda espero a sua queda. Podemos ficar assim até o final dos tempos. A luta só acaba quando um perder. E, a julgar pelo seu olhar perdido, pela sombra de medo que franze o queixo maltratado, pela distração com que recebe as orientações do seu técnico, você vai perder. Ainda não sabe, mas o seu destino é juntar-se à lona, beijar o sangue recém-limpo e ficar ali, contemplando o abismo. E cabe a mim ser a mão que o conduz à derrocada, o instrumento da sua derrota. Não se preocupe, amigo e irmão de sangue, você vai sobreviver. Todo mundo cai, o difícil mesmo é aguentar o que acontece depois da queda.
O sinal toca e eu me levanto com um pulo. Bato nas luvas com energia redobrada e o inimigo pisca, pois parece ver um novo homem ressuscitando. Eu me aproximo dele, erguendo as mãos. Que a minha pele seja concreto, atravessando a defesa alheia como se ela fosse de algodão. Que os músculos sejam tijolos, aríetes arremessando contra a sua indecisão e fraqueza. Que as veias e artérias sejam muros, desviando das suas últimas tentativas de ataque. Que eu seja o castelo invencível, com as bandeiras erguidas no final da luta, vendo o espírito do outro quebrar e sabendo que as honras da vitória me pertencem.


Gustavo Melo Czekster é escritor gaúcho da nova geração. Autor de O Homem Despedaçado. Editora Dublinense.

7 comentários:

  1. Castelo invencível, sim. Não tem mar, não tem guerra, nem guerreiro que derrubem o Rocly, ainda mais agora em palavras.
    Beijos, Gustavo.
    Seu conto é o máximo e estou muito grata de tê-lo aqui.

    ResponderExcluir
  2. Também gostei do texto. Vigoroso como os punhos do Rocky.

    José Carlos

    ResponderExcluir
  3. José Carlos, o Gustavo é meu colega de literaturasss :) E, como eu, adora o Rocky Balboa!! Talvez, sejamos os dois únicos fãs, mas somos até o fim.
    beijoss

    ResponderExcluir
  4. Embora não seja fã desse tipo de luta, gostei muito do texto: forte e reflexivo. Temos muitas lutas a travar ao longo dessa curta existência!

    Gostei muito da imagem do "cabeçalho", bela escolha!

    beijosss, Lê

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ci, peguei essa imagem no facebook rsrsrs
      Tou fazendo uma pasta só de imagens de lá.
      Quanto ao texto do Gustavo, eu, além de ser super fã do Rocky e da lona, acho super bem escrito e sensível.
      Tou lendo o Homem Despedaçado. É dele. São contos. E adorando!
      Tou meio atrapalhada essa semana. Não tenho escrito nem comentado blogs direito, mas volto ao normal em breve.
      Saudadessss!!
      Beijoss

      Excluir