terça-feira, 25 de outubro de 2011

Uma crônica de Clarice Lispector

"Nu azul" - Henri Matisse
O que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia?
Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos ser tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos, nem aos outros. Não temos nenhuma alegria que tenha sido catalogada. Temos construído catedrais e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e talvez sem consolo. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro que por amor diga: teu medo. Temos organizado associações de pavor sorridente, onde se serve a bebida com soda. Temos procurado salvar-nos, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de amor e de ódio. Temos mantido em segredo a nossa morte. Temos feito arte por não sabermos como é a outra coisa. Temos disfarçado com amor nossa indiferença, disfarçado nossa indiferença com a angústia, disfarçando com o pequeno medo o grande medo maior. Não temos adorado, por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo”, e assim não chorarmos antes de apagar a luz. Temos tido a certeza de que eu também e vocês todos também, e por isso todos sem saber se amam. Temos sorrido em público do que não sorrimos quando ficamos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso temos considerado a vitória nossa de cada dia...

9 comentários:

  1. Não precisamos temer muito o próximo, somos mestres em auto destruição.

    Abraço

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  2. Ai, pudesse eu dizer que "sim, ainda consigo ser tola!"
    Beijos, Ci!

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  3. Tudo o que Clarice Lispector diz é verdade... pura verdade!

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  4. Que texto belíssimo. Talvez já pensado e nunca dito.

    Já está no google +

    Beijos

    Mirze

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  5. Minha gente, nem sei o que dizer desse texto
    tão simples e tão profundo! Em mim, calou fundo,
    e silenciosamente recolho-me para refletir sobre
    tudo que Clarice escreveu... :))

    um beijo a todas vocês

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  6. Clarice, a deusa do comum e do inédito, deusa do óbvio que não conseguimos enxergar...Clarice, sempre e eterna perfeição nas palavras.

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  7. Cir, isso não são vitórias da vida, é apenas cobardia de ser. Gostei.
    beijo

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  8. Apenas um tolo sorri à morte com meia cara.
    A vida deve ser enfrentada sempre do modo que seja o mais politicamente incorrecto possível. Concordo em absoluto com Clarice, de quem aprendi a gostar.
    beijo.

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  9. GED, acho que Clarice nos convida nesse texto a
    pelo menos tentar nos olhar por dentro, nos autocriticarmos antes de sair por aí julgando e
    criticando o Outro.
    Somos todos do mesmo barro!!!

    um beijo

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