quinta-feira, 30 de junho de 2011

Aos porões o sempre



Que se diga primeiro que havia tristeza e silêncio nas horas do homem da história. Quanto à descrição do quarto sem luz em que o encontramos, que se enfatize a impossibilidade da porta e das janelas - era o mundo do homem só. Sobre a noite que avançava, saibam, não havia sono que o libertasse de si nem remédio para as feridas que colhera no tempo. A metros dali, estava a coordenadora da casa de repouso em que morria lentamente esse homem da tristeza. Esta, ao saber da escuridão e dos porões que guardavam as tristes memórias do mundo de antes do homem do quarto, decidiu convidar à história quem dela faria melhor uso – a moça da vingança. Assim, apareceu nessa tristeza contada a mulher que tinha mais passado no que vivia, e carregava em sorrisos de metade os traumas e as ausências. Começou a visitar o homem do silêncio na semana seguinte, fingindo ser aquela que usava afeto e sensibilidade contra a escuridão lá fora do sistema. Havia razões para odiar aquele que interditara décadas antes o caminho em que ela ia, mas encontrou ali um senhor de olhar distante, um velhinho indefeso. Mudanças. Com segundos planos, ela estendeu ao homem da solidão parada a estrada das mil possibilidades. No primeiro sorriso ele já acreditou. E foi tanta visita aos sentimentos que ele voltou a dormir. Também nos dias de sol arriscou alegrar-se; e com mais medidas de tudo voltou a amar. A moça da intenção velada, com idade de filha, devolveu o oposto do que recebeu em dobro; daquele silêncio distante reinventou um homem, deu-lhe vida. Então o amor passou a ser o tamanho do quarto, que ficou pequeno para existir dentro e só. Ela o levou aos passeios da cidade, aos sorvetes das tardes, ao colorido das manhãs, como se o amasse como pai, como se houvesse isso na intenção. No entanto ele, amando-a como se fosse filha, abriu os caminhos da alma; tanto assim escancarada para não haver volta, mesmo sem saber as dores. Eis o resultado: de amor estava consolidado o mais controverso laço. A moça conseguiu. Aos de vingança, o melhor momento de ataque é o percebimento da fragilidade do adversário. Foi isso. O homem era só de estima paternal e olhos no dia em que ela decidiu espalhar sobre a mesa as fotos de dois jornalistas que silenciaram para sempre nas mãos de um carrasco. Era um casal: mãe e pai da moça - discursos abafados; corpos enterrados em matagais. Foi fato não divulgado nos tempos da ditadura militar; tempos em que problemas se resolviam com pancada, com cordas, alicates e porões. Essa tristeza, velha companheira, rebocou-o de volta ao passado, ao silêncio do quarto pequeno na escuridão. Olhou para as mãos enrugadas. Não havia água que lavasse ali a sensação de sangue, nem música que apagasse os gritos ainda lá nos corredores sombrios da memória. Ela insistia com o amor nas fotografias, com dedos deslizantes sobre sorrisos de gente morta, a maldizer ainda seu destino de órfã, com perguntas sem intenções de resposta, só desabafo. Esse tanto de amor presenciado, recém-percebido, sem doer em lugar certo, torturava o homem da tristeza sem fim, que tanto investiu nas tramas do caminho oposto - violência. Curiosamente, a última lição a conferir deste amor era contra ele mesmo, algo a roer-lhe a consciência no sempre dos dias, a mostrar-lhe tardiamente o outro lado da história. A moça da vingança chorou mais três instantes e saiu. Antes, beijou, por mais intenção, a testa daquele que assassinou seus pais: era somente um homem idoso, assustado, vencido, mais morto que vivo, a secar no silêncio que cresceu dali para muito mais. Depois da porta, ainda que sem solução para as lacunas, havia o caminho; ela foi e nunca chegou.


A imagem acima é intitulada "Las manos del terror"; 
foi pintada por Oswaldo Guayasamín (1919-1999).

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