O papel, a mesa, o sol, a pena...
Ao lado, a janela. E nada tenho
e nada sou que escrevo. E nada espero
de quanto espero.
Enquanto escrevo não sou nem mesmo quero
não escuto nem palavras nem silêncio.
Alinho palavras mas ainda não caminho.
Estou a uma mesa pobre sem movimento.
O papel, a mesa, o sol, a pena...
Nada começa, nem à sombra respiro.
Tudo é distinto e claro.
Tudo é certo ou obscuro. Eu não sou
neste intervalo. Em vão caminho.
Não quero esperar,
não quero navegar num mar fácil de palavras.
Quero caminhar somente com o corpo que sou,
quero, sem querer, ser o próprio sangue,
músculos, língua, braços, pernas, sexo,
a mesma certeza oculta e única, tantas vezes clara,
a mesma força que nos pulsos aflora, tensa,
a mesma noite aberta que a todo o dia estendo,
a mesma alta, , elástica dança de um corpo vivo!
Mas agora estou no intervalo em que
toda a sombra é fria e todo o sangue é pobre.
Escrevo para não viver sem espaço,
para que o corpo não morra na sombra fria.
Sou a pobreza ilimitada de uma página.
Sou um campo abandonado. A margem
sem respiração.
Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabe
a ciência certa da navegação no espaço,
o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia,
o corpo pode vencer a fria sombra do dia.
Todas as palavras se iluminam
ao lume certo do corpo que se despe,
todas as palavras ficam nuas
na tua sombra ardente.
ANTONIO RAMOS ROSA, em Animal olhar - A construção do corpo - Editora Escrituras.
O autor nasceu em Portugal, na cidade de Faro, em 1924.
Um grande escritor. Gostei deste post.Mesmo
ResponderExcluirMuito.Bj.
Irene Alves
É um grande poeta, um grande escritor, com certeza!
ExcluirObrigada por sua leitura, por sua visita!
Seja bem-vinda, Irene!!!
Quase não existo...Levito lendo o Ramos Rosa.
ResponderExcluirBeijos, Ci.
E eu estou debaixo da mesa :) estendida, sobre o chão!
Excluirbeijos, Tânia
Eu também quase não existo
ResponderExcluirSomos três, tentando existir :)
Excluirbeijos, Lelena
ah, bela escolha
ResponderExcluire continuando... somos quatro
beijinho