domingo, 16 de dezembro de 2012

Joãozinho-Sem-Medo


 
 
Era uma vez um menino chamado Joãozinho-Sem-Medo, pois não tinha medo de nada. Andava pelo mundo e foi parar em uma hospedaria, onde pediu abrigo.
- Aqui não tem lugar - disse o dono -, mas se você não tem medo, posso mandá-lo para um palácio.
- Por que eu sentiria medo?
- Porque alí a gente sente, e ninguém saiu de lá a não ser morto. De manhã,  a Companhia leva o caixão para carregar quem teve a coragem de passar a noite lá.
Imaginem Joãozinho! Levou um candeeiro, uma garrafa, uma linguiça, e lá se foi.
À meia-noite, comia sentado à mesa quando ouviu uma voz saindo da chaminé:
- Jogo?
E Joãozinho respondeu:
- Jogue logo!
Da chaminé desceu uma perna de homem. Joãozinho bebeu um copo de vinho.
Depois a voz tornou a perguntar:
- Jogo?
E Joãozinho:
- Jogue logo!
E desceu outra perna do homem. Joãozinho mordeu a linguiça.
- Jogo?
- Jogue logo!
E desceu um braço. Joãozinho começou a assoviar.
- Jogo?
- Jogue logo!
Outro braço.
- Jogo?
- Jogue!
E caiu um corpo que se colou nas pernas e nos braços, ficando de pé um homem sem cabeça.
- Jogo?
- Jogue!
Caiu a cabeça e pulou em cima do corpo. Era um homenzarrão gigantesco, e Joãozinho levantou o copo dizendo:
- À saúde!
O homenzarrão disse:
- Peque o candeeiro e venha.
Joãozinho pegou o candeeiro, mas não se mexeu.
- Passe na freste! - disse Joãozinho.
- Você - disse o homem.
- Você - disse Joãozinho.
Então o homem se adiantou e de sala em sala atravessou o palácio, com Joãozinho atrás, iluminando. Debaixo de uma escadaria havia uma portinhola.
- Abra! - disse o homem a Joãozinho.
E Joãozinho:
- Abra você!
E o homem abriu com um empurrão. Havia uma escada em caracol.
- Desça - disse o homem.
- Primeiro você - disse Joãozinho
Desceram a um subterrâneo, e o homem indicou uma laje no chão.
- Levante!
- Levante você! - disse Joãozinho, e o homem a ergueu como se fosse uma pedrinha.
Embaixo havia três tigelas cheias de moedas de ouro.
- Leva para cima!  -  disse o homem.
- Leve para cima você! - disse Joãozinho. E o homem levou uma de cada vez para cima.
Quando foram de novo para a sala da chaminé, o homem disse:
- Joãozinho, quebrou-se o encanto! - Arrancou-se uma perna, que saiu esperneando pela chaminé - Destas tigelas uma é sua - Arrancou-se um braço, que trepou pela chaminé. - Outra é para a Companhia que virá buscá-lo pensando que você está morto - Arrancou-se o outro braço, que acompanhou o primeiro. - A terceira é para o primeiro pobre que passar - Pode ficar com o palácio também. Arrancou-se o corpo e ficou só a cabeça no chão. - Porque se perdeu para sempre a estirpe dos proprietários  deste palácio. - E a cabeça se ergueu e subiu pelo buraco da chaminé.
- Assim que o céu clareou, ouviu-se um canto: Miserere mei, miserere mei, e era a  Companhia com o caixão que vinha recolher Joãozinho morto. E o veem na janela, fumando cachimbo.
Joãozinho-Sem-Medo ficou rico com aquelas moedas de ouro  e morou feliz no palácio. Até que um dia aconteceu que, virando-se, viu sua sombra e levou um susto tão grande que morreu
 
 
Extraído de Fábulas italianas, sob a coordenação de Ítalo Calvino - Companhia do Bolso.

5 comentários:

  1. Grande ítalo Calvino! Um abraço. Tenhas uma linda semana.

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  2. o grande João e a sua grande sombra que o fez ser muito, muito pequeno

    beijo

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    1. Enfrentamos os "monstros externos" e sucumbimos com a
      sombra dos nossos :)

      beijo, Laura

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