quarta-feira, 22 de maio de 2013

Clarice Lispector - Carta à irmã (trechos)

 

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro... há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Quase quatro anos me transformaram muito. No momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo o interesse pelas coisas. Você já viu um touro castrado se transformar em boi? Assim fiquei eu. Para me adaptar ao inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - esse é seu único meio de viver. Juro por Deus que, se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ía ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo. Gostaria mesmo que você visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma.

Carta escrita à irmã (Tânia Kaufmann), em 1947, quando estava em Berna(Suíça)

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