domingo, 8 de maio de 2011

Titanic II -- Pobre rica alma



         Ei, bípede, minha alma também precisa da sua atenção. Ontem, vi quando você e o seu pequeno bípede chegaram à exposição dos nossos destroços. Eu estava conversando com a Alma, dizendo a ela para educar melhor os filhos, que assim não é possível, que eles estão se transformando em verdadeiros tubarões no instante em que os seus olhos escuros como esse fundo de morte em que vivo, passaram por mim e, inquietos, me fizeram entender: eis a criatura que há de se importar conosco, comigo, mais do que com as coisas, então, corri em sua direção para que você comprasse o meu boarding pass e falasse de mim, mas o Torburg, o menino mais velho da Alma, esse pequeno viking, colocou-se no meu caminho, barrou-me com seu corpinho forte, e gritou: vai, mãe. E a Alma foi. Por um segundo, fiquei desolado. Eu e esse meu marítimo destino nos sentimentos, de novo, afogados. Sabe, bípede, aqui não interessa quem é de primeira ou de terceira ou sem classe. Aqui o que conta é o humano de cada um. E o meu anda tão calado, precisando de um pouco de letras, de memórias para não se diluir. O meu cachorro, você sabe, eu tinha uma cadela airedale, a Kitty, sempre comigo antes da água nos separar, perdeu-se de mim quando o barco se partiu. Eu corri até o canil do navio, libertei a ela e a todos os cães para que morressem sem coleiras e fiz isso em um gesto de lealdade de homem, porque um homem deve também lealdade ao seu animal e deve estar ao seu lado até o fim. Mas foi inútil. A vida sempre perde na última batalha, não importa a coragem e o afeto do seu exército. Aprendi isso em segundos, escapando fumacinha da minha boca, quando levantei-me do bote número 4, eu estava no bote número 4 porque sou, fui um senhor muito rico, na verdade, o passageiro mais afortunado, veja só quanta ironia, daquele enorme navio, e dei o meu par de luvas para a Madeleine, a minha jovem esposa grávida, porque se não haveria botes salva-vidas para todos, não haveria também para mim. E levantei-me porque falou o som da minha honra, um som mais profundo que o das minhas abotoaduras de ouro e de ocenaos. A honra é um diamante à prova de tempo. De tão genuína e sólida como uma força da natureza, resiste até a um iceberg maior que um sonho. A honra é um eco maior que a esperança e que a fé. Mas não a que uma criança, um menino como o seu pequeno bípede, um menino, talvez parecido com o que minha mulher gerava, um menino capaz de dar pulos e gritos por comprar o boarding pass do cavalheiro mais rico a bordo, gritando, mãe, olha só quem eu sou, eu sou o Jonh Jacob Astor IV, o milionário dos milioários, sem dar-se conta, ainda, do quanto o dinheiro, às vezes, não vale mesmo nada.

5 comentários:

  1. Ei, bípede... eu, bípede... Que triste. Mas o dia das mães, não é muito feliz para muita gente, mesmo...

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  2. Bípede: Texto denso este teu. E belíssimamente bem escrito. Também, com esta bagagem toda...Bjs.

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  3. Concordo com o Paulo Amaral. Que vínculo você foi encontrar! Esse particular canal de comunicação que só pode ter se estabelecido a partir de alguma intensa e emocionada impressão.

    Beijo.

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  4. Querida Bípede,
    Que lindo.
    Como andas perfeitamente viajante nas letras e tudo que tocas e vês nos transmites tão sensivelmente.
    Embalas viagens em tua alma.
    Eu, como podes ver, enroladinha com meus úteros e bebês...ainda por me parir esperando quem sabe um Simpson.
    Grande beijo
    Marie

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  5. Bípede,maravilhoso conto, cheio de fantasía e cheio-também-de vocé.
    (Bah: há ,no fundo, alguma diferença?)

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