domingo, 31 de março de 2013

A inveja passeia pelas ruas




O homem que não tiver virtude própria sempre invejará a virtude dos outros. A razão disso é que a alma humana nutre-se do bem próprio ou do mal alheio, e aquela que carece de um, aspira a obter o outro, e aquele que está longe de esperar obter méritos de outrem, procurará nivelar-se com ele, destruindo-lhe a fortuna. As pessoas que são curiosas e indiscretas são geralmente invejosas; porque conhecer muito a respeito da vida alheia não pode resultar do que concerne os próprios negócios. Isso deve provir, portanto, de tomar uma espécie de prazer teatral a admirar a fortuna dos outros. Aliás, quem não se ocupa senão dos próprios negócios não encontra matéria para invejas. Porque a inveja é uma paixão calaceira, isto é, passeia pelas ruas e não fica em casa.


Francis Bacon, filósofo e ensaísta inglês, em   Ensaios - Da Inveja. (1561-1626)

quinta-feira, 28 de março de 2013

Das ilusões perdidas...


"... E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."


Miguel Sousa Tavares, natural da cidade do Porto, advogado, jornalista e escritor,  filho da poeta e escritora Sophia de Mello Breyner Andressen.

terça-feira, 26 de março de 2013

As Negociatas

De Clarice Lispector, no livro Para não Esquecer:

AS NEGOCIATAS


Depois que descobri em mim mesma como é que se pensa, nunca mais pude acreditar no pensamento dos outros.


segunda-feira, 25 de março de 2013

Elza nos representa

Anos de alma - Clarice Lispector

ANIVERSÁRIO


 -- Amanhã faço dez anos. Vou aproveitar bem este meu último dia de nove anos.
Pausa, tristeza:
-- Mamãe, minha alma não tem dez anos.
-- Quanto tem?
-- Só uns oito.
-- Não faz mal, é assim mesmo.
-- Mas eu acho que se devia contar os anos de alma. A gente dizia: aquele cara morreu com vinte anos de alma. E o cara tinha morrido mas era com setenta anos de corpo.

Do livro Para não esquecer, de Clarice Lispector.

Estalactites

 
 
 
no alto ressoa um seixo agudo
a noite verte vidro
o tempo estaca
eu
cascalho
tu
te
vidras
 
 
August Stranm, dramaturgo e poeta expressionista alemão, editor da revista expressionista Der Sturm (A tempestade); abandonou a métrica e quebrou a sintaxe de forma radical eliminando a pontuação em alguns de seus poemas. Nasceu em Munster(1874-1915)

domingo, 24 de março de 2013

Revoadas



Dentro de um vidro fechado
improvisava lanternas
dos vagalumes da infância
depois sentia pena e os soltava
sobre os canteiros escuros.

sábado, 23 de março de 2013

Da série bonecas de papel



Na película delicada
Vais guardando os arranhões
da tinta derramada
na boca da tua infância
coagulada 
dentro do quarto
desarmado de mãos
e de verbos sem afeto.

A uma formiga - Iacir Anderson Freitas

Do poeta mineiro Iacir Anderson Freitas:


Sei que cumpres teus anos
a cada minuto, 
que não terás muito tempo 
para o que de fato é o tempo
e suas recusas. 

Vejo-te cruzar agora
o planalto de linho e trigo
que diante de mim 
é uma simples mesa 
mas em ti
assombra a eternidade
com suas frutas, 
seus lençóis de pão e açúcar, 
suas colheres de um leite
que lembra na carne 
o paraíso. 

És para mim uma máquina 
sem sentido no mundo. 

De tua boca
fogem talvez cometas absurdos,
constelações que têm no dorso
o nome de meus antepassados,
folhagens que não vi ou não provei, palavras
que ainda me chamam
da infância. 

És o que não compreendo.
O que é extremo
feito o sinal de Deus
e não compreendo.

Tu continuas sobre a mesa.
O planalto de linho não se acaba, 
indiferente a mim e a ti 
nesta casa.

A minha presença, o meu assombro, nada 
chegou ainda a teu corpo. 
Tu tens talvez este resto de tarde
que não deixará um nome 
na inconsciência 
que te move. 

Também eu
que te sei 
não me salvo: 
esse incêndio levará um dia
a tua lembrança
do meu sangue, levará a lembrança 
de outros dias, 
a memória do sangue
no meu sangue
e o mundo voltará à indiferença
que nos cerca. 

Teu corpo vence enfim o beiral de linho
e desaparece comigo
no caos.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Antonio Machado - Provérbios e cantares (fragmentos)

 

 

I
 
 
Nunca perseguí a glória,
nem quis deixar na memória
dos homens minha canção;
eu amo os mundos sutis,
ingrávidos e gentis,
como bolhas de sabão.
Gosto de vê-los pintarem-se
de sol e grená, voarem
sob o céu azul, vibrarem
subitamente e estourarem-se.
 
 
IV
 
 
Nossas horas são minutos
quando esperamos saber;
séculos quando sabemos
o que se pode aprender.
 
 
Sevilha (1875-1939)

terça-feira, 19 de março de 2013

Quase

Homenagem ao poeta, Lisboa
 
(...)
 
Um pouco mais de sol - e fora brasa.
Um pouco mais de azul -  e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe d'asa.
Se ao menos eu permanecesse aquém...
 
Mário Sá-Carneiro, poeta e ficcionista português, um dos maiores representantes do Modernismo em Portugal, juntamente com Fernando Pessoa, de quem foi muito amigo. (1890-1916)

segunda-feira, 18 de março de 2013

Ao Norte do Uruguai, o Extremo Sul do Brasil


Quanto acordei estava no Uruguai


Era Punta del Diablo, mas parecia a Grécia


Era para pintar um quadro mas preferi tirar uma foto de smartphone


E sai pela cidade a procura de detalhes


Na volta a Lagoa Mirim


Ao lado, no Taim, no extremo sul do Brasil, uma capela,Capila

sábado, 16 de março de 2013

ATO

Masao Yamamoto

 

 

um poema me deixou um sismo na carne
me arqueou o corpo
e traçou
em minhas costas itinerários de espuma.
 
com um gosto de cor
na boca
deixei cair pulsante
um
longo beijo
morno
 
***

ESTAÇÃO
 
tenho um outono no corpo
de onde as
coisas
caem

vejo doçura nas roupas
espalhadas
pelo chão
 
 
Mariana Botelho, Padre Paraíso, Vale do Jequitinhonha (MG)

quarta-feira, 13 de março de 2013

Inerte



E a nós
que tanto amamos
resta o temor
de que
o amor
possa se esvair
sem pena.

Resta o medo
do vazio
de que não falaremos
ainda em nome do amor
que existirá
inerte
dentro de nós.



terça-feira, 12 de março de 2013

Apoiando a arte

foto Andre Mantelli


VOCÊ TAMBÉM PODE SER UM APOIADOR COLABORADOR DO PROJETO AUDIOBOOK JUDITE QUER CHORAR, MAS NÃO CONSEGUE!

Agora você já pode realizar seu apoio ao projeto "Audiobook: Judite quer chorar, mas não consegue!", narrado por Malu Mader, comprando o livro antecipadamente no site:http://catarse.me/pt/audiobookjudite. É muito fácil de acessar, cadastre seu e-mail e senha, escolha a categoria LITERATURA, e em seguida localize o projeto Audiobook Judite quer chorar, mas não consegue!, assista o vídeo com Edu Oliveira sobre o projeto, depois é só clicar em (APOIAR ESTE PROJETO) e escolher a sua recompensa, pronto você já estará apto a realizar o pagamento. O site é muito seguro e o cadastramento super rápido.

link para acessar o projeto: http://catarse.me/pt/audiobookjudite

se puderem divulgar já será uma grande contribuição


ilustração de Clarice Cajueiro Miranda para o livro 
Judite quer chorar, mas não consegue!

domingo, 10 de março de 2013

Inquietude



Guardados na pele,
pelo corpo adentro

revoltos os barros
agitados os rios, arrumadas correntes

guardo em silêncio
no arado da mão

os sangues doridos
os astros simples e escuros
que não me nasceram
coração,
o linho gasto, o tecido barrento.

Na chuva enxurrada e inquieta
guardada na pele,
por dentro da pele
ainda trago o livro, a linha
e da vida, a palavra placenta

o ruído que atormenta
tormenta de centos de rios, desalinhados e evidentes

nesga dos silêncios que falam, o corpo
a pedra que já não aguenta, o corpo
o dia apócrifo
no espaço demais
o dia contrito
pelo corpo adentro,
e dentro

um coração
o sangue exausto, barro gasto e sedento.

Março 2013, 10
Leonardo B.

[nota breve: texto original para o blog Mínimo Ajuste]

sexta-feira, 8 de março de 2013

Vou confundir - me na pele de certos marinheiros


«Há qualquer coisa que ainda não percebi muito bem o que é, qualquer coisa que se passa em Lisboa, estou aqui há tantas horas a pensar na minha vida. O cão já correu dum lado para o outro vezes sem conta e agora descansa e dormita a meus pés, como tu gostas, Bé. Eu, numa linda imagem, costumada imagem, sentada no paredão com o cão a meus pés. Paz. Pés. Paz. Pés. Paz.


Não quero saber nem da Milu nem do coxo nem do amante nem da pobre da minha sogra dos saltos altos, nem do homem que é o seu marido, nem sequer quero saber do meu próprio marido! Vou partir para nunca mais ser vista. Posso caminhar eternamente por este passeio, caminhar pelo resto da minha vida, receber as gotas de água do mar, os salpicos da espuma destas ondas que batem incansavelmente neste paredão e num segundo se esvaziam, de volta nesse imenso regaço, nesse fundo de mistério que é o mar, que sou eu mesma. Hoje decidi que vou continuar a caminhar por aqui fora e a confundir -me com tudo o que for natural, com algumas aves, com esses fios de nuvens que percorrem todo o céu e lhe conferem um tom de certezas; vou confundir -me na pele de certos marinheiros, desses que gritaram e choraram e imploraram pela clemência divina e que não foram ouvidos, tal como eu, e aqui estou, ó povos deste mar, destas lonjuras tão próximas, aqui estou ó tempestades, ventos e desnortes que vos quero mais que a vida! É este o meu retrato, não o meu negativo mas a minha fotografi a: descalça no paredão, o cão que me acompanha rente aos joelhos, imperturbável e amigo, as línguas de fora, a minha e a dele, uma mais comprida que outra, e trotamos, trotamos não como cão e pessoa mas como qualquer outro animal que, no fundo, está aqui sempre presente.»

Cristina Carvalho, Marginal, Editorial Planeta, 2013, pp.83-84

Fonte: focussocial



quarta-feira, 6 de março de 2013

Mulher não é objeto, não!

Mais um primeiro parágrafo - Raduan Nassar

      O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida n a moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali no canto, me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que  dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar no verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.

Parágrafo de abertura do conto Hoje de Madrugada, do livro Menina a Caminho, do magnífico, escritor grande amor da minha vida: Raduan Nassar!

Vermelho Amargo

Mesmo em maio - com manhãs secas e frias  - sou tentado a mentir-me. E minto-me com demasiada convicção e sabedoria, sem duvidas das mentiras que invento para mim. Desconheço o ruído que interrompeu meu sono naquela noite. Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo. A vida me pareceu inteiramente concluída. Inventei-me mais inverdades para vencer o dia amanhecendo sob névoa. Preencher um dia é demasiadamente penoso, se não me ocupo das mentiras.

Parágrafo de abertura do livro Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queirós

terça-feira, 5 de março de 2013

Rubem Braga, O Verão e as Mulheres


 

Talvez tenha acabado o verão. Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol é muito claro. Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas. As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão.

Estamos tranqüilos. Fizemos este verão com paciência e firmeza, como os veteranos fazem a guerra. Estivemos atentos à lua e ao mar; suamos nosso corpo; contemplamos as evoluções de nossas mulheres, pois sabemos o quanto é perigoso para elas o verão.

Sim, as mulheres estão sujeitas a uma grande influência do verão; no bojo do mês de janeiro elas sentem o coração lânguido, e se espreguiçam de um modo especial; seus olhos brilham devagar, elas começam a dizer uma coisa e param no meio, ficam olhando as folhas das amendoeiras como se tivessem acabado de descobrir um estranho passarinho. Seus cabelos tornam-se mais claros e às vezes os olhos também; algumas crescem imperceptivelmente meio centímetro. Estremecem quando de súbito defrontam um gato; são assaltadas por uma remota vontade de miar; e certamente, quando a tarde cai, ronronam para si mesmas.

Entregam-se a redes; é sabido, ao longo de toda a faixa tropical do globo, que as mulheres não habituadas a rede e que nelas se deitam ao crepúsculo, no estio, são perseguidas por fantasias e algumas imaginam que podem voar de uma nuvem a outra nuvem com facilidade. Sendo embaladas, elas se comprazem nesse jogo passivo e às vezes tendem a se deixar raptar, por deleite ou preguiça.

Observei uma dessas pessoas na véspera do solstício, em 20 de dezembro, quando o sol ia atingindo o primeiro ponto do Capricórnio, e a acompanhei até as imediações do Carnaval. Sentia-se que ia acontecer algo, no segundo dia da lua cheia de fevereiro; sua boca estava entreaberta: fiz um sinal aos interessados, e ela pôde ser salva.

Se realmente já chegou o outono, embora não o dia 22, me avisem. Sucederam muitas coisas; é tempo de buscar um pouco de recolhimento e pensar em fazer um poema.

Vamos atenuar os acontecimentos, e encarar com mais doçura e confiança as nossas mulheres. As que sobreviveram a este verão.
Março, 1953.

Extraído do livro "A Cidade e a Roça", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 27.







segunda-feira, 4 de março de 2013

O coração do poeta


 
 

O coração do poeta... 
O coração do poeta tem bordas flácidas.
Ele derrama, vaza, descamba.
O coração do poeta tem perna bamba.
Constituição frágil e congênita.
Não adianta querer vitaminá-lo,
  Pois seu tônus se refaz nos frêmitos
Das chegadas e dos abandonos,
O melhor é deixar-se amar
E, se possível, não deixar de amá-lo.
 
 
  Ana Cristina César  

sábado, 2 de março de 2013

A terceira miséria


 
A terceira miséria é esta, a de hoje
A de quem já não ouve nem pergunta
A de quem não recorda.
E, ao contrário de Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam.
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma
Desfeita em pó a estátua.
 
 
HÉLIA CORREIA, Lisboa, Portugal (1949-  )