sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Rubem Braga - 1913-1990


Procura-se aflitivamente pelas igrejas e botequins, e no recesso dos lares e nas gavetas dos escritórios, procura-se insistente e melancolicamente, procura-se comovida e desesperadamente, e de todos os modos e com muitos outros advérbios de modo, procura-se junto a amigos judeus e árabes, e senhoras suspeitas e insuspeitas, sem distinção de credo nem de plástica, procura-se junto às estátuas e na areia da praia, e na noite de chuva e na manhã encharcada de luz, procura-se com as mãos, os olhos e coração um pobre caderninho azul que tem escrito na capa a palavra endereços e dentro está todo sujo, rabiscado e velho. Pondera-se que tal caderninho não tem valor para nenhuma outra pessoa de boa-fé,  a não ser seu desgraçado autor. Tem este autor publicado vários livros e enchido  bem ou mal centenas de quilômetros de colunas de jornal e revista, porém sua única obra sincera e sentida é esse caderninho azul, escrito através de longos anos de aflições e esperanças, negócios urgentes e amores contrariadíssimos embora seja forçoso confessar que há ali números de telefone que foram escritos em momentos em que um pé do cidadão pisava uma nuvem e outro uma estrela e os outros dois… – sim, meus concidadãos, trata-se de um quadrúpede. Eu sou um velho quadrúpede e de quatro joelhos no chão eu peço que me ajudeis a encontrar esse objeto perdido. Pois eis que não perdi um simples caderno, mas um velho sobrado de Florença e um pobre mocambo do Recife, um arcanjo de cabelos castanhos residente em Botafogo em 1943, um doce remorso paulista e o endereço do único homem honrado que sabe consertar palhinha de cadeira no Distrito Federal. O caderno é reconhecível para os estranhos mediante o desenho feito na folha branca do fim, representando Vênus de Milo em birome azul o desenho foi feito pelo abaixo assinado no próprio Museu do Louvre, e nesse momento a deusa estremeceu. Haverá talvez um número de telefone rabiscado no torso da deusa, assim como na letra K há trechos de um poema para sempre inacabado escrito com letra particularmente ruim. Na segunda página da letra D há notas sobre vencimentos de humildes, porém nefandas dívidas bancárias e com uma letra que eu não digo meça o nome de meu bem, que é todo o mal de minha vida. Procura-se um caderninho azul escrito a lápis e tinta e sangue, suor, lágrimas, com setenta por cento de endereços caducos e cancelados e telefones retirados e, portanto, absolutamente necessários e urgentes e irreconstituíveis. Procura-se, e talvez não se queira achar, um caderninho azul com um passado cinzento e confuso de um homem triste e vulgar… Procura-se, e talvez não se queira achar.

5 comentários:

  1. Já existem mais cronistas das estirpe do Rubem Braga. Existem cronistas excelentes, mas O Rubem era singular.
    Um abraço. Tenhas um lindo fim de semana.

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  2. este é meu ídolo, cirandeira.
    ninguém escreveru, nem escreverá crônicas como este cara...
    ô, se eu fosse Tônia Carreiro (por quem ele era alucinado) teria "colaborado"...rs

    beijão,
    r.

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  3. Maravilha, cirandeira! Esse foi um cronista nunca igualado.
    Gosto demais dos textos dele.
    beijo beijo!

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  4. Sobre a vida – e principalmente as circunstâncias que cercaram a a morte de Rubem Braga – vale a pena ler este excelente texto do mauro santayana, do Jornal do Brasil:
    http://www.maurosantayana.com/2013/01/rubem-e-o-poder.html

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