terça-feira, 26 de novembro de 2013

Brincando com meu gato














Meu gato.
Te vi na televisão.
Camisa branca, calça jeans, sorriso imenso.
Falou, absurdo: escrevo pra ela me ler.  
Ela eu, perguntei para os meus botões já aos risos.
E tu repetiste diante das câmeras: é, escrevo pra ela me ler.
E eu ronronei  satisfeita por te ter tão ímpar.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Do diário de meu tio




Passei em frente à casa de Marina. Gosto de ver aquela casa, tem um jeito que chama a gente. O jeito de Marina. Entrei lá duas ou três vezes, joguei botão com o irmão dela que mudou pra Recife e uma vez tomei lanche com eles. Depois de terminar o namoro com Marina às vezes passava lá, na esperança de vê-la na varanda como naquele dia. Mesmo contra toda lógica, teimo em pensar que isso seria como um sinal de que tudo podia recomeçar.
O cheiro que vinha da casa era uma viagem. Pão doce, cheiro de pão doce fresquinho, novo, dourado. Imaginei a mesa posta, o aipim desmanchando na boca, a manteiga derretida por cima e aquela cobertura morena de canela e açúcar. Pãozinho francês estalando dentro da cesta de vime com o paninho de crochê de bico, branquinho e engomado de leve. A manteigueira, o açucareiro, o bule do café e a leiteira do jogo branco e azul. Os queijos, sempre três ou quatro, o presunto rosado e tenrinho, o requeijão cremoso, fresco, delicioso. O pote do mel de laranjeira, e na tigela branca os sequilhos, biscoitinhos de nata, ao lado do vidro bojudo das torradas e do outro, da geléia. Três ou quatro sucos naturais, um doce de goiaba, outro de leite; o bolo de milho no prato de pé.
Altíssimo astral junto à janela de vidro aberta para o pôr-do-sol e as montanhas azuladas. A mesa coberta pela toalha leve de xadrez miudinho e claro, recendendo a capim-cheiroso; os guardanapos bordados de florinhas e as xícaras azuis.
(Silêncio reverente, suspiro calado, profundo mergulho no âmago do ser.)
As margaridas no canteiro da cerca lá fora e gerânios na jardineira sobre o muro que esconde a área de serviço.
Daria muito por esse momento. Mas não fico muito tempo diante da casa. Tenho medo de que meu desejo se realize e ela apareça na varanda, caso em que eu seria bem capaz de perder a cabeça e voltar com ela, mesmo sabendo o que viria depois. Porque é verdade que seria capaz de dar quase tudo por esse momento. Menos a liberdade.

A moça

Arruma os livros, ajeita as flores do vaso, enfileira feito soldados a coleção de bonecos vindos dos quatro cantos redondos do mundo. 
Tira o pó dos porta-retratos, areja os álbuns e digitaliza imagens enquanto reduz a 3x4 as cenas do passado. Festas, mares, vulcões, amigos, copos de leite, de cólera e de vinho. 
Prende os cabelos em um nó, estica os braços pra cima, alonga os músculos, dá a função por encerrada e caminha até a cozinha.
Guarda as toalhas, os guardanapos, arranha um dedo com uma faca e, sem querer, derruba o par de xícaras do primeiro café bebido entre as paredes coloridas da casa antiga.
Vai para o quarto, senta na cama, empurra as pilhas de roupas um pouco pro lado e acaricia a colcha perfumada de alecrim. 
Acaricia a colcha, as coxas e o contorno dos seios. 
Sente o suor, o transbordamento e as pulsões do corpo. Sente a mente diluindo a poeira incrustada de rancores. 
Sente a mente, a matéria e o abandono deixando a memória, deixando-a voltar-se para o futuro em direção à calma e ao descanso de um merecido travesseiro.

domingo, 17 de novembro de 2013

A visita

 
 
 
Como faço todas as tardes, tomei um banho, botei um vestido bem leve, me maquiei, passei perfume, ajeitei os cabelos com gel, fui até a sala, chamei um taxi, descí no elevador, cumprimentei o porteiro, peguei o taxi; dei a volta no quarteirão, saltei, tornei a cumprimentar o porteiro, subí no elevador, parei em frente à porta e toquei a campaínha.
Ninguém abriu. Insistí, uma, duas, três, quatro vezes.
 Nada. Não adianta. Não estou. E fico aqui parada, diante da porta, na dúvida: deixo um bilhete para mim?
 
 
Haiconto de Alice Barreira, Barura(Amapá)
 extraído de http://cesarcar.blogspot.com/

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Para refletir...

Francis Picabia
 
Autores são atores. Livros são teatros.
 
Jogue fora as luzes, as definições. Diga o que você vê na escuridão.
 
Wallace Stevens, Pensilvânia(EUA) - 1879-1955


sábado, 9 de novembro de 2013

De Paul Valéry

No poeta:
A orelha fala,
A boca escuta:
É a inteligência, o despertar, quem procria e sonha;
É o sonho quem vê claro;
É a imagem e o fantasma quem olha,
É a falta e a lacuna quem cria.
 
 
 
A ideia de Inspiração contém:
O que nada custa é o que tem maior valor.
O que tem maior valor nada deve custar.
E também:
Glorifica-se o máximo aquilo do que menos responsável se é.
 
Litérature,  1929

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

improviso (para imagem de Usha Tsonkova)


















“Nas coisas conhecidas
  o verbo ser
    emudece”
em o eco de mil sinos de prata, Ana Hatherly



vertido o resíduo do verbo
na estria  nascente
do dia,

no braço do rio
no sobejo, no excesso tardio
do corpo imaginário,
a bagagem, nós

e da sombra
[tão ténue a linha excedente da margem]
e na margem, a voz

e da voz
que sobra resíduo

as coisas conhecidas
que aguardam no corpo
na forma de semente
vertigem, a  voz

e do cio da voz,
no braço do rio, na estria nascente
[tão inquieta, quase gente]
a silenciosa aprendizagem do norte

a nuvem da ténue asa breve
o fim.


Novembro 2013, 6



[nota: por desafio de Tania Contreiras, improviso para imagem de Usha Tsonkova.
Um grato e imenso abraço, Tania!]

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Teoria das cores

 
 

Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.

O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia o que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor - sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro, através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.

Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.


Herberto Helder, em Os passos em volta - Assírio e Alvim, Lisboa, 2001

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Ilusões da vida

Cécile Hesse
 
Quem passou pela vida
em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu,
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu
Foi espectro de Homem - não foi Homem.
Só passou pela vida - não viveu.
 
Francisco Otaviano, Rio de Janeiro (1825-1889)


sábado, 2 de novembro de 2013

Ânsia


 
Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma
 
As horas são-me escassas
dai-me o tempo
ainda que não o mereça
que eu quero ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desconcentrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo
 
 
Mia Couto