quarta-feira, 29 de maio de 2013

Casa Vazia

 
Manuel Alvarez Bravo
 

Poema nenhum,
 nunca mais será um acontecimento:
Escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,
para esse público dos ermos,
 
composto apenas de nós mesmos,
uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas,
seu deserto particular,
ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.
 
 
Alberto da Cunha Melo, sociólogo, jornalista e poeta, nascido em Jaboatão dos Guararapes(PE) - 1942-2007

sábado, 25 de maio de 2013

A condição indestrutível de ter sido (contra-capa e trecho)

 

 
" E me tornei mais que um lar ou uma mesa coberta com uma toalhinha de xadrez. Transformei-me na fenda de suas convenções, no vírus e no antídoto, quer ele entendesse ou não, porque estavam em mim os códigos de seu labirinto, o alimento do homem cheio de ganas, do macho que não aceitaria outra exaustão a não ser a do querer."
 
 
Helena Terra ( 'bípede falante' )


quarta-feira, 22 de maio de 2013

Clarice Lispector - Carta à irmã (trechos)

 

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro... há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Quase quatro anos me transformaram muito. No momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo o interesse pelas coisas. Você já viu um touro castrado se transformar em boi? Assim fiquei eu. Para me adaptar ao inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - esse é seu único meio de viver. Juro por Deus que, se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ía ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo. Gostaria mesmo que você visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma.

Carta escrita à irmã (Tânia Kaufmann), em 1947, quando estava em Berna(Suíça)

domingo, 19 de maio de 2013

Revista Pessoa

http://www.revistapessoa.com/2013/05/uma-chuva/#



Poemas de Vera Lúcia de Oliveira e ilustração de Helena Terra

Tudo está em tudo

 
 
 
Regra é da vida que podemos, e devemos, aprender com toda a gente. Há coisas da seriedade da vida que podemos aprender com charlatães e bandidos, há filosofias que nos ministram os estúpidos, há lições de firmeza e de lei que vêm no acaso e nos que são do acaso. Tudo está em tudo.
Em certos momentos muito claros da meditação, como aqueles em que, pelo princípio da tarde, vagueio observante pelas ruas, cada pessoa me traz uma notícia, cada casa me dá uma novidade, cada cartaz tem um aviso para mim.
Meu passeio calado é uma conversa contínua, e todos nós, homens, casas, pedras, cartazes e céu, somos uma grande multidão amiga, acotovelando-se de palavras na grande procissão do Destino.
 
 
Fernando Pessoa,  Livro do Desassossego

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Yes, nós temos futebol







Melhor que não ter. Já pensou, a gente só pensando no perigo, no assalto, na violência, nas quadrilhas de bandidos – escondidos ou nem tanto – na politicalha que só dá vergonha, e nem uma paixãozinha como o futebol pra alegrar? Nem um motivo pra pular, buzinar, gritar de pura felicidade? Nem um motivo assim como esse pra enlouquecer, xingar com vontade – olha a catarse aí! – e depois vibrar com a vitória?

E se não houver vitória? Ora, ficam umas histórias boas pra contar, que daqui a um tempo vão ficar ainda melhores: coisas pra contar à geração que vem aí e não viu esses prodígios da seleção; coisas pra comentar na mesa do bar, razões pra conviver melhor com vizinhos chatos, parentes abusados, amigos espaçosos. Os passes errados, os chutes sem sorte, as defesas impossíveis – não é pouca coisa. E como acontecem!

O sol e o frio




Antes dos joelhos e das palmas das mãos sangrarem e dela me perguntar por que você confia tanto nas pessoas, o sol e o frio testemunhavam a hora em que ela colocou-me em cima do muro alto, tão mais alto que o meu corpo, um céu vertical sobre a minha infância, um passo para uma queda, a minha queda  encorajada pelas palavras dela, ei, Helena, deixa de ser medrosa, fica de pé, te equilibra; palavras irrecusáveis, como se eu tivesse escolha a não ser obedecer, eu que desejava tanto agradá-la, conquistá-la, querendo ser  afeto e  bailarina na ponta dos pés, eu que acreditava em sorrisos iguais aos dela enquanto me dizia pula, menina.        

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Nos dias de chuva



Nos dias de chuva intensa, quando os relâmpagos iluminam as paredes, corro até o armário do último quarto, onde se guardam as coisas restantes da casa, e pego a toalha azul aveludada com que às vezes seco meu corpo, para depois cobrir, equilibrando-me sobre um banco, o espelho de  moldura envelhecida sempre exposto ao silêncio dos meus medos, espelho em que me fito à noite,quando escovo os dentes e em que me surpreendo com os desenhos do meu rosto, não me achando parecida com minha mãe e tampouco comigo, com a mulher que abriga a minha expressão antes de me deitar e com quem acordo, eu, em metamorfose ora lenta ora tumultuada, perdida  em meio a traços estranhos e incompreensíveis à percepção dos meus olhos lapidados por lágrimas e risos e pela inconstante presença de outros olhos sobre os meus, sobre o meu nariz, minha boca, sobre os meus movimentos carentes de colo, de carne e de credo.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Procura-se



 
Uma família inteira de palavras: vogais consoantes verbos advérbios conjunções pronomes pessoais, enfim, todos os laços que envolvem os mais diversos tipos de sentimentos de uma comunidade linguística desapareceram repentinamente, da noite para o dia. Os doutos representantes dessa família estão reunidos há bastante tempo na tentativa de encontrar uma explicação para o seu desaparecimento. Alguns já pensam até em fazer um inventário de todos os bens por ela deixados:
- o verbo é meu! – diz alguém; -
 eu prefiro o pronome possessivo! – diz o outro;
- eu quero o pingo nos iis e as interjeições! – diz outro em tom teatral;
- eu vou quebrar a métrica e soltar todas as rimas, quero meu versos soltos!
O narrador, que a tudo assiste de um canto da página, encontra-se numa situação um tanto delicada: tem ouvido tantas opiniões, lido um sem número de páginas sobre casos semelhantes. Alguns até afirmam que o eu-lírico tem sido uma repetição daquilo que escreveram há quase um século! Que não há nada de novo, que não há mais emoção nem originalidade; outros dizem, com todas as letras, que pegaram a matriz e estão fabricando textos para jogar às feras do mercado editorial e vendê-los nas feiras como se fossem bananas transgênicas!
Há tantas controvérsias! Será que existe alguém que já nasceu sabendo? O que é mesmo novo, quem imita quem no universo das palavras, das artes em geral?
 E se ninguém contar, se ninguém mais poetar, nem mesmo cantar, choramingar... E se todos ficarem mudos, inclusive o narrador?

O que você faria se fosse o narrador? 

Dispersos
...

Vou ali chorar e volto.
Juntarei minhas mãos em concha
depositarei lágrimas, com cuidado, até as bordas
e entregarei à terra.
Desse encontro vingará
a cabeceira do rio.

Seu leito não aceitará cuidados
pois é mais forte que eu.
Sulcos de lodo e segredos,
matas de alegria, pedras indomáveis,
sedimentos de saudade e amores mal acabados.

Amanhã chorarei de novo
depois de amanhã também
para alimentar seu curso
de água, sal, sofrimento.
Nesse rio caudaloso
banharei o transtorno, a urgência,
a virulência do sentimento.

Em sua foz,
um dia,
me deitarei
e morte.

Martha 



terça-feira, 7 de maio de 2013

Quando escrevo posso ser humano...

 
 
Ana Hatherly


"Quando escrevemos, sentimos o mundo se mover; ágil, transbordando de possibilidades, nem um pouco congelado. Enquanto escrevo, mesmo agora, o mundo não se fecha sobre mim, não se torna mais estreito: ele faz gestos de abertura e de futuro.
Eu escrevo. Imagino. O simples fato de imaginar me dá vida novamente. Não estou nem congelado nem paralisado diante do predador. [...]
Eu escrevo também o que não podemos fazer reviver. Escrevo também o inconsolável. [...] Ponho o dedo na ferida e no luto como se toca com as mãos nuas a corrente elétrica, e entretanto não morro. Não chego a captar como se opera esse milagre."


David Grossman, Jerusalém, 1954

domingo, 5 de maio de 2013

Revista Pessoa - Conto de Pedro Mexia - Ilustração de Helena Terra (a bípede falante rsrs)

http://www.revistapessoa.com/2013/05/a-mae-judia/


Viagem através de uma nebulosa


 
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
 
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
 
Não posso adiar
ainda que a noite pese século sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
 
Não posso adiar o coração



Antônio Ramos Rosa, Faro, Portugal, 1924


A mulher que virou princesa


_ ¿Como foi que você virou princesa?
_ Virando, respondeu Caralâmpia. A gente vira e desvira.

(Graciliano Ramos, Alexandre e outros heróis)


sexta-feira, 3 de maio de 2013

Federico Fellini, Amarcord

Há um tempo



Há um tempo em que é preciso abandonar as
roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo,
e esquecer os nossos caminhos, que
nos levam sempre aos mesmos lugares. É o
tempo da travessia: e, se não ousarmos
fazê-la, teremos ficado, para sempre, à
margem de nós mesmos.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Quando mais é menos...

 

 
mais um dia
ou um dia a mais
para uma conta a menos
no transcorrer de uma existência
parada...


A palavra com febre



congela
não me diz nada.

nem mesmo
a eloquência
do silêncio
forjado na
última hora.

fecha a porta
vai embora.

já apodrece
cada sílaba
do que me foi dito.

ontem à noite
prometi ao espelho:
só quero palavras febris.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Dos tempos de guria

Poema de Donizete Galvão

Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas 
das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
Fique atento.
A atenção
é sua forma natural 
de oração.

Lanterna dos afogados

Olhando para mim

Algumas coisas sao tão automáticas na nossa vida, que pouco nos damos conta delas. Evoluímos, mudamos, amadurecemos, nos adaptamos. Tudo tão constantemente, que pouco percebemos.
Em alguns momentos, um sofrimento, uma perda, um choque ocasiona o inicio desse processo. Ainda assim, para nos adaptarmos da maneira necessária, nao e da noite para odia. Leva tempo, e com esse tempo algo ocasionado abruptamente, vai acontecendo aos poucos.

Eu tenho pensado nisso quase todos os dias.

Penso em coisas tão pequenas que mudaram em mim. Penso em como aprendi, pouco há pouco a eliminar fontes de estresse, e sem me dar conta, me tornei mais leve em vários aspectos.

Penso em como, sem nem perceber, transformei minha paixão por cozinhar alimentos pesados e gordos em uma cozinha mais leve, equilibrada e saborosa.

Penso em como construí minha vida perto da minha casa, para ser feliz sem precisar de carro após ter mais uma vez vivenciado uma experiência de insegurança. E como hoje me questiono sobre querer ou nao ter um carro na minha vida de novo.

E penso, muito, em que momento me transformei em quem sou hoje?

Em que momento mudei tanto a minha busca de prioridades e valores? Quando percebi que so quero, pessoas que agreguem, ao meu redor. E que me façam agregar. Em que momento aprendi a cuidar de mim, sem deixar de cuidar de quem precisa de mim, apenas mudando a prioridade. Em que momento percebi que nao posso dar aquilo que nao tenho, mas posso entregar com o coração escancarado tudo o que tenho de melhor. E que isso deve bastar para as pessoas que estao ao meu redor.

Em que momento entendi que nao quero alguém que mude por mim, mas alguém cujos defeitos eu entenda. Alguem que se sinta melhor ao meu lado, e me faca sentir o mesmo. E que esse alguém, nao me idealize, nem projete. Esse alguém apenas me veja como sou. E ainda assim acredite que eu valho a pena. Quando será que entendi que nao busco ninguem, apenas sei que o que e meu, será meu quando for.

Em que momento, aprendi que para ver o outro, preciso ver a mim primeiro? Nao sei ao certo. Mas foi caminhando, passo a passo, sem nem sentir.

QUEM É ELENA? WHO IS ELENA?