sexta-feira, 6 de abril de 2012

Auto dos Danados






Não são só os ratos, aliás, que moram connosco no sótão. Possuímos um jardim zoológico completo de formigas, melgas, traças, centopeias, aranhas, grilos, carunchos, que presumo alimentarem-se da mesma falta de comida do que nós, sem contar as borboletas que se esmagam contra as lâmpadas, no verão, e se reduzem de imediato a um pozinho escuro de verniz. E há os pombos. E as rolas. E os barcos, como lesmas, no Tejo. E os vizinhos em camisola interior, incapazes de voar, crucificados nos craveiros das varandas. E tu e eu, cada vez mais transparentes e magros, a prepararmos o pequeno almoço de meio grama de heroína da injecção da manhã.

Antonio Lobo Antunes, Lisboa (1942), autor, entre outros, de "Memória de Elefante", "Os Cus de Judas", "Manual dos Inquisidores".

5 comentários:

  1. Cirandeira,


    António Lobo Antunes é caudaloso, habilíssimo em colocar vozes dentro de vozes, "brincar" com falas explícitas e implícitas (não-ditas) em cada um de seus personagens, trabalhar os tempos narrativos [fazendo um jogo entre presente-passado, à exaustão]. Provavelmente o mais hábil romancista em língua portuguesa vivo. Sua profusão narrativo-analítica é a de um psiquiatra-escritor mostrando o primor de sua carpintaria. Fora da escala. Um ponto fora da curva de Gauss. "Monstruosamente" competente.



    Até Diogo Mainardi, que não é cara de elogio fácil, se via obrigado a elogiá-lo, quando fazia resenhas literárias para a Veja. Algo do tipo: "Ele escreve na minha língua, de uma maneira que jamais eu saberia fazer ou conceber, dizendo as coisas de maneira eficaz e ímpar", etc, etc, etc. É por aí. Parece que ele escreve numa mesma "língua ampliada", digo eu, tal a amplitude que ela adquire no seu pensar/dizer.



    Tem que fazer exame de sangue no cara, rastrear os genes, antidoping, sei lá...


    ;)




    Um beijo, amiga.

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    1. Lobo Antunes não é pro bico (ou pena!) de um Diogo qualquer, me desculpa a franqueza, Marcelo; mão acho que
      ele "não é um cara de elogio fácil e se via obrigado a elogiá-lo", mas acho é que ele não tem envergadura literária suficiente para adensar nessa área, apenas isso!

      um beijo

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  2. Cirandeira,




    Para ser mais claro: mesmo o "tique" do Diogo em criticar tudo e todos [de Don DeLillo a Thomas Pynchon, passando por Philip Roth] não pôde ser exercido no caso de Lobo Antunes. E, em termos de envergadura [!], qualquer desses grandes escritores também poderia/deveria/estaria distante do alcance das "lentes exegéticas do Diogo". Entonces, friso que António escapou até da "presunção de envergadura crítica" do antigo resenhista literário da Veja.




    Vou explicitar mais a MINHA OPINIÃO a respeito do Antunes: quando li "A Ordem Natural das Coisas", passei a emprestar/dar/comprar pra um monte de gente que gosta de literatura tal livro [e outros, do autor], como o fiz com o menos conhecido "Viagem ao México" de Silviano Santiago. Excelente livro, com algumas das virtudes de manejo tempo-espaço/ voz interna-vozes externas do António Lobo Antunes, tendo Antonin Artaud no Rio de Janeiro deslocado no tempo, como cenário improvável, tendo de recuperar mitologias astecas em viagem. [Gostou do enredo?].





    Fui colega de classe do Diogo, no primário. Convivemos, inclusive frequentando a casa um do outro, conhecendo familiares. Até o final da adolescência/início da vida adulta, ainda tínhamos contato. Já em Veneza, ele me mandava cartas [eu não tinha e-mail!].Conheço, portanto, o temperamento do rapaz.



    "Opinioso" é um qualificativo que se prestaria a quem quer opinar sobre (quase) tudo. Por certo, alguns o fazem por profissão, "tique", (mau) hábito, em vez de dizerem simplesmente, "não sei o que dizer". Jabor tem momentos opiniosos, Caetano Veloso idem, Lobão nem se fala..., cada qual no seu tom e no seu "quantum". Até Rafinha Bastos... A questão não é só a de um escritor estar "acima do crítico que pretende avaliá-lo": os bons escritores estarão sempre acima dos não-tão-bons leitores. É inevitável. E se a comparação for feita entre um crítico-escritor e um escritor, a situação fica ainda mais complicada. Podemos não gostar de escritores que estejam anos-luz adiante de nós, enquanto narradores, criadores, artesãos habilidosos, etc, etc, etc. Podemos não gostar dos temas, e achá-los mestres em seu ofício, por exemplo. Ferreira Gullar subestimou tanto Guimarães Rosa em sua "inopinada" [/"opiniosa"] crítica, que chamou Grande Sertão de um "Western com sotaque de sertão mineiro" e nada mais.[!] Reconheceu o erro, mais tarde... James Ellroy, que se autoproclama "o melhor e maior escritor policial da História Humana[!]" tem sobejas razões técnicas para ser tão "autoconfiante", mas podemos preferir outros escritores dentro do mesmo gênero. Ou nem gostar do gênero, mas "reconhecer seus méritos dentro do gênero que não gostamos"... As variáveis são muitas.


    Especificamente no caso do Diogo-Lobo Antunes, é essa: ele "se viu dobrado" ante a obra do sujeito que seria "objeto de sua crítica". Sem apelação. E, complementando "a questão Diogo": Diogo Mainardi encarna uma persona, "a la Paulo Francis". Mas, de vez em quando, se vê forçado a trair a persona que construiu. É claro que há muito do próprio Diogo na "persona adotada". Mas ela é, deliberada e calculadamente, "over". É um "tipo". Uma caricatura do que ele sabe que pensa, com "cores mais carregadas".



    Desculpe a extensão do comentário, mas acho importante quando tratamos de escritores tão complexos como António Lobo Antunes [de longe, o mais complexo em língua portuguesa, dentre os vivos, na minha opinião]. E também me parece interessante a discussão sobre "o escopo de quem se arvora em crítico de caras dessa envergadura".



    Beijos, e Boa Páscoa!

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  3. Bom, o texto me chamou, mas os comentários também...rs... Tudo por também acreditar que o Diogo não tem mesmo envergadura para nada. Criou um tipo? Claro, a escolha da persona já diz muito do sujeito, que detesto. Mas falamos aqui do Lobo Antunes, E aí, sim, ah!!!! :-)

    Beijos,

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