Um dia desses resolvi usar a passagem subterrânea da Rua da Consolação. Eu vinha da Av. Angélica e queria ir pela Av. paulista até o Conjunto Nacional. Começou a chover e nada do sinal abrir para que eu pudesse atravessar condignamente pela faixa. O que pode ser pior do que ficar ensopado? Desci as escadas e uma grata surprêsa esperava por mim. Esta passagem foi ocupada por um sebo comandado por uma pessoa especial. Lá, por exemplo, é divulgado o trabalho do pessoal da Dança de Rua. Fuçando, encontrei este singelo desenho que imediatamente fotografei. Bom feriado a todos.
domingo, 29 de abril de 2012
Falta
Tantas palavras para dizer.
Tantas palavras para ouvir.
Ouvir como se tocasse, no rádio, um recado.
Ouvir como se fosse possível assoviar, na alma, um desatino.
Tantas perguntas para inaudíveis respostas.
Tantos ah se você soubesse. Ah se eu pudesse.
Tanta sabedoria inalcançável antes da hora.
Quantos gritos de alarme movidos a dor?
Tão vasta língua.
Vasta saliva.
Uma, duas, inúmeras palavras para dizer, ouvir, ler, escrever
no clamor dos sons e das sílabas
e falta-me a primeira
a mais eterna, a mais
antiga.
terça-feira, 24 de abril de 2012
Em lembrança de Bachelard
a poesia que como pó
se expande em vendaval
segreda a imensidão do ínfimo*
(Luiza Maciel Nogueira)
*para ler Bachelard
segunda-feira, 23 de abril de 2012
Carícia
"Demore-se no carinho,
de modo que no rosto do outro
vá a mão como se não fora
voltar. Repita,
demorando-se mais,
de modo que a mão descanse
naquele rosto, como se,
e se esqueça de que.
Repita, demore-se no carinho
como se a mão desse adeus,
agarrada ao rosto que se vai.
Outra vez: repita,
demorando-se mais
e mais, como se a mão bebesse
daquele rosto para, saciada, dormir
ali mesmo, ao pé da fonte."
EUCANAÂ FERRAZ
Cogito
Eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim
Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início;
Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.
Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:
só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim do fim de tudo
e o tem do tempo vivido;
não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de ideia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas e crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento
TORQUATO NETO
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim
Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início;
Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.
Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:
só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim do fim de tudo
e o tem do tempo vivido;
não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de ideia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas e crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento
TORQUATO NETO
sábado, 21 de abril de 2012
Alegoria
cores canoras dores silentes
azul da Prússia, pata de gazela
rabo de peixe, cavalo montês
malmequer não tequero palavra
decantada no canto da ema
Ouço passos...silêncio na selva:
cio da Terra desolada manhã outonal
olhos de pantera, crina leonina
serpenteando solo úmido e pantanoso.
Um navio-fantasma encalhado
no porto à espera de
passageiros sonhos!
quinta-feira, 19 de abril de 2012
Catando estrelas
Noite estrelada no Ródano, Van Gogh
há que cantar, rimar ou sonhar...
há que fingir, sorrir, não pestanejar?
mas não, o rio rasga-se em braços
urge em afluentes, ruge em corredeiras,
saltos, quedas, cachoeiras
vasos, veias,
versos que se arrebentam
o sol brilha arde queima
não anoitece
e a lua não aparece
e o poeta procura estrelas
que se precipitaram sobre o chão
Vem agora, Poesia!
quero ver se és capaz de
amalgamar-te com
a dor e a alegria
rimar
finitude com vazio!
Para onde foram tuas asas se
o teu ninho é só solidão?
De contrários é o leito
do rio onde navegas
teu rumo é semelhante
mas de sorte diversa
e o poeta quer de volta
as estrelas no firmamento!
quarta-feira, 18 de abril de 2012
Planetinha peludo
Quatro mil, oitocentos e sessenta e oito passos.
Duzentas e oitenta e sete calorias consumidas.
Exatos três quilômetros em caminhada acelerada no parque que mora ao lado.
No parque que mora ao lado, correm pessoas, passeiam pessoas, vivem pessoas.
No meio, há canteiros de flores.
Em uma ponta, há quem coma miséria em latas.
Na outra, para compensar o que entra, há quem abaixe as calças e defeque sua humanidade virado de bunda pra vida.
Na outra, para compensar o que entra, há quem abaixe as calças e defeque sua humanidade virado de bunda pra vida.
No parque há também cães e donos.
Bípedes como eu e quadrúpedes como o meu Bono.
Duplas com um pé atrás do outro, com dois pares de patas uns atrás dos outros.
Quase todas com o objetivo de entrar em forma, criar uma forma, manter a forma.
Bípedes como eu e quadrúpedes como o meu Bono.
Duplas com um pé atrás do outro, com dois pares de patas uns atrás dos outros.
Quase todas com o objetivo de entrar em forma, criar uma forma, manter a forma.
O Bono perdeu a dele.
O Bono, com esse nome de bolacha, de uma hora para outra, ficou redondo e entrou em órbita. E, planetinha peludo sem satélite, colidiu com a preguiça e com a vontade de ser pantufa, chinelo velho sem um pé torto, cão sem pulgas.
Então, fomos para o parque dar quatro mil, oitocentos e sessenta e oito passos.
Perder duzentas e oitenta e sete calorias.
Andar exatos três quilômetros.
Perder duzentas e oitenta e sete calorias.
Andar exatos três quilômetros.
Fomos.
Perdemos.
Andamos.
Perdemos.
Andamos.
E voltamos para casa, pé depois de pé, pata depois de pata, derrubados por um certo cansaço e,
estranhamente, muito, muito mais pesados.
estranhamente, muito, muito mais pesados.
VELHICE
Na sequência do post anterior, deixem-me contar-vos que há novidades.
O mundo mudou e mudou muito.
A medicina preventiva, a saúde materno-infantil, estendendo-se apesar de tudo e muito lentamente por esse globo fora, melhores condições sociais ( sim, isso mesmo, porque apesar do roubo descarado da corrupção vulgarizada, de governos incapazes por esse mundo fora, as condições gerais melhoraram), e uma medicina curativa muito tecnológicamente avançada, a definição de idoso ou de velho mudou radicalmente.
E isso está referido nas normas da Organização Mundial de Saúde.
Há alguns meses foi retirada a definição de idoso ou de velho, da nomenclatura em uso.
Determinou a Organização e do meu ponto de vista bem, que a nova definição é apenas de "mais velho".
E cada vez a longevidade será maior.
Lembrem-se dos vossos avós, com quarenta anos e olhem para vocês agora. Notam a diferença?
Na verdade esta é apenas a parte física da questão. Quanto à viagem interior de cada um e de todos essa é outra história, que não vale a pena ser contada. Pelo menos agora.
Abraços
terça-feira, 17 de abril de 2012
O que é viver bem?
Um repórter perguntou à Cora Coralina o que é viver bem?
Ela disse: "Eu não tenho medo dos anos e não penso em velhice. E digo pra você, não pense.
Nunca diga estou envelhecendo, estou ficando velho. Eu não digo. Eu não digo estou velha, e não digo que estou ouvindo pouco. É claro que quando preciso de ajuda, eu digo que preciso.
Procuro sempre ler e estar atualizada com os fatos e isso me ajuda a vencer as dificuldades da vida. O melhor roteiro é ler e praticar o que lê.
O bom é produzir sempre e não dormir de dia.
Também não diga pra você que está ficando esquecido, porque assim você fica mais.
Nunca digo que estou doente, digo sempre: estou ótima.
Eu não digo nunca que estou cansada. Nada de palavra negativa. Quanto mais você diz estar ficando cansada e esquecida, mais esquecida fica.
Você vai se convencendo daquilo e convence o outro. Então silêncio!
Sei que tenho muitos anos. Sei que venho do século passado, e que trago comigo todas as idades, mas não sei se sou velha não. Você acha que eu sou?
Posso dizer que eu sou a terra e nada mais quero ser. Filha dessa abençoada terra de Goiás.
Convoco os velhos como eu, ou mais velhos que eu, para exercerem seus direitos. Sei que alguém vai ter que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo.
Tenho consciência de ser autêntica e procuro superar todos os dias minha própria personalidade, despedaçando dentro de mim tudo que é velho e morto, pois lutar é a palavra vibrante que levanta os fracos e determina os fortes. O importante é semear, produzir milhões de sorrisos de solidariedade e amizade.
Procuro semear otimismo e plantar sementes de paz e justiça. Digo o que penso, com esperança. Penso no que faço, com fé. Faço o que devo fazer, com amor.
Eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende.
Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir".
Cora Coralina
Ela disse: "Eu não tenho medo dos anos e não penso em velhice. E digo pra você, não pense.
Nunca diga estou envelhecendo, estou ficando velho. Eu não digo. Eu não digo estou velha, e não digo que estou ouvindo pouco. É claro que quando preciso de ajuda, eu digo que preciso.
Procuro sempre ler e estar atualizada com os fatos e isso me ajuda a vencer as dificuldades da vida. O melhor roteiro é ler e praticar o que lê.
O bom é produzir sempre e não dormir de dia.
Também não diga pra você que está ficando esquecido, porque assim você fica mais.
Nunca digo que estou doente, digo sempre: estou ótima.
Eu não digo nunca que estou cansada. Nada de palavra negativa. Quanto mais você diz estar ficando cansada e esquecida, mais esquecida fica.
Você vai se convencendo daquilo e convence o outro. Então silêncio!
Sei que tenho muitos anos. Sei que venho do século passado, e que trago comigo todas as idades, mas não sei se sou velha não. Você acha que eu sou?
Posso dizer que eu sou a terra e nada mais quero ser. Filha dessa abençoada terra de Goiás.
Convoco os velhos como eu, ou mais velhos que eu, para exercerem seus direitos. Sei que alguém vai ter que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo.
Tenho consciência de ser autêntica e procuro superar todos os dias minha própria personalidade, despedaçando dentro de mim tudo que é velho e morto, pois lutar é a palavra vibrante que levanta os fracos e determina os fortes. O importante é semear, produzir milhões de sorrisos de solidariedade e amizade.
Procuro semear otimismo e plantar sementes de paz e justiça. Digo o que penso, com esperança. Penso no que faço, com fé. Faço o que devo fazer, com amor.
Eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende.
Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir".
Cora Coralina
domingo, 15 de abril de 2012
Enquanto Homem
.
Para Lee Ran ho, para o
seu Caminho
De que adianta
de minhas mãos se dizerem pequenas
se dentro, guardam o silêncio
que escuta o meu deus por palavra?
De que adianta
de meu corpo se dizer frágil,
um enxerto, uma sílaba no tempo
[o tanto, o tempo tão infinito como breve instante]
se nele
os centos de rios de sangue
os centos de vozes derrames
os centos de rufares de tambor
no lado esquerdo do peito,
cantam orações ao meu deus?
De que adianta
saber-me no corpo da toda a água e
prender-me o passo ao mar sem fim?
E de que adianta,
se da margem que não me acorrenta
sou lama e pedra e nascente do rio da voz,
a primeira voz de mim?
Enquanto homem
sou o relógio e o tempo,
um passo de dança por dentro da casa do vento;
e no entanto,
lembro-me que fui divino por nove meses
dentro dum ventre, há tanto
e agora
enquanto homem
sou apenas o alcance da minha voz
e isso basta-me.
Abril 12, 2012
[breve aparte: texto editado na Barca dos Amantes, também…]
[imagem: reprodução de mela-2001, da série The Great
Gathering, de James Hervey com a autorização do autor para este texto.]
.
sábado, 14 de abril de 2012
Poema de Ezio Déda, do livro A cada das Ausências...
Assembleia Literatura
Minha entrevista para o Canal Assembleia.
Martha Galrão
Martha Galrão
Nome sem letras
Nome sem letras
revela o teu tamanho,
devolve o contorno da palavra
moradora do teu avesso,
da verdade traçada à nanquim,
da impressão dos teus olhos
e das janelas que
guardam
em meus lábios
nuvens nascidas
por ti.
revela o teu tamanho,
devolve o contorno da palavra
moradora do teu avesso,
da verdade traçada à nanquim,
da impressão dos teus olhos
e das janelas que
guardam
em meus lábios
nuvens nascidas
por ti.
sexta-feira, 13 de abril de 2012
A Última Escola de Humanidades
em detalhes, por favor,
o que está escrito aqui,
na sua prova de ingresso
ao nosso curso de Artes e
Humanidades.
Depois você explica como e
por que, para você, a arte é
um pacote único e múltiplo.
Porque é poliédrico. Porque é
poliarte. Plurissonante, diz você.
Pois ressoa e reverbera por toda
parte.
Diz você que, quem ouve Bach,
com ouvidos de ver, intui a geo
-metria, conhece, por tabela,
o número e a atmosfera
onde se dão o tom o pul
-so a melodia o tempo e
o espaço, em três
dimensões
internas.
A partir daí, você considera,
quem ouve Bach [e aprende,
com o ouvido, a geometrizar],
intui o número e o algarismo.
Passa a se perguntar sobre o
que se desdobra do zero ao um
ao dois ao três ao sem-número,
ao infinito. E refaz o percurso
de Grécia, Índia, África,
Suméria e
Egito.
Rememora reconstitui refaz
reinventa as tradições orais
e as Escrituras.
São tuas essas
noções. Essas
noções são
tuas.
Compara reencontra redescobre
relembra rememora, diz você,
relê a Torá a partir do
Mahabharata.
Relê melhor certas passagens
da Bíblia, a partir de outras
passsagens do Bhagavad
Gita.
Compara fatos
e alegorias,
feitos e
guerras.
São tuas noções,
para as quais, todos
nós, esperamos maiores
e melhores explicações.
Quem ouve Bach intui a
geometria, é seu ponto de
partida.
E quem ouve bem Bach, como se deve,
descobre a cadência da própria voz,
e aprende a ouvir a entender melhor
as vozes de todos os demais.
Entende as grandes biografias e
a História das Civilizações, por
analogia.
Por fim, você arremata [sem muito
nos esclarecer], que quem ouve Bach,
Cesar Franck e Debussy [e compara três
modos de geometrizar erigir edificar], des
-cobre tanto as leis da oratória [que costuram
as falas de personagens ilustres da nossa História],
quanto aprende a sentir ouvir ver escutar [nas três
dimensões internas], espumas borbulhas e esperas,
nas arrebentações do mar...
(Marcelo Novaes)
quinta-feira, 12 de abril de 2012
O texto é a única forma de identificar o sexo e a humanidade de alguém porque, ó poeta estranho, o sexo de alguém, é a sua narrativa. A sua, ou a que o texto conta, no seu lugar. Assim o sexo será como for o lugar do texto.
Quando se deseja alguém, como tu desejas Infausta, e ela deseja Johann, é o seu lugar cênico que se deseja, os gestos do texto que descreve no espaço e chamar-lhe precioso companheiro; de mim, direi que fui uma vez enviado, trouxeste a frase que nunca antes leras, o meu corpo a disse, e não reparaste que ficaste com ela escrita.
Maria Gabriela Llansol, Lisboa (1931-2008)
Quando se deseja alguém, como tu desejas Infausta, e ela deseja Johann, é o seu lugar cênico que se deseja, os gestos do texto que descreve no espaço e chamar-lhe precioso companheiro; de mim, direi que fui uma vez enviado, trouxeste a frase que nunca antes leras, o meu corpo a disse, e não reparaste que ficaste com ela escrita.
Maria Gabriela Llansol, Lisboa (1931-2008)
terça-feira, 10 de abril de 2012
Uma manhã no Agreste
E eis que sem prévio aviso, atraindo meu olhar, ali vão despontando ao longo do caminho, pequenas fulgurações, ora em tons de violeta, lilás e lilás claro, quase se confundindo com o azul claro, ora com o rosa com o ocre, amarelo claro, carmim. Difícil é resistir ao impulso de tocá-las, buscar sua fragrância, talvez duvidosa de sua real existência em meio àquela mata sem estirpe, ao barro, pedra, aquelas minúsculas porções de magia e encanto nos arrebatam a ponto de querermos verificar, num gesto brusco dos humanos se de fato aquelas florzinhas de tão delicadas formas, são mesmo de verdade: se talvez experimentando os efeitos de altas doses de oxigênio em torno de nós, não estaremos alucinando, a ver estrelas no capinzal. Sim, no capim vimos estrelas que num primeiro momento parecem ter sido pintadas a mão, como se alguém querendo aproveitar a cal que sobrou de uma construção, resolvesse pintar a natureza. Não, foi o capim que vendo tantas lindas florzinhas a seu redor, numa atitude de desafio, decidiu também tornar-se flor!. Pequena amostra da natureza, peço-te perdão pelo meu momento de desvario que me fez arrancar-te do solo para contemplar-te mais de perto, admirar tua delicadeza, quem sabe procurando guardá-la dentro de mim por instantes.
Creio contudo, que no máximo devo contentar-me em poder admirar-te, ter um pouco de sensibilidade para isso o que talvez já seja um pequeno privilégio, entorpecida que vim, das emanações urbanas do concreto vertical. Nessa minha caminhada em busca do verde, das coisas simples, deparei-me também com suaves acordes que brotavam ora do vento balouçando as árvores e capinzais do que nos restou da mata atlântica, ora do marulhar de uma pequena grota quase oculta por verdejante relva. Mas os sons não param por aí: escuto também o trinado ritmado de passarinhos que chamamos tesouras, lavandeiras, bem-te-vis e se tivermos sorte, ainda ouviremos um desses pequenos maestros da mata que a espaços de tempo regulares, como numa marcação orquestral, nos dão o tom de seu fagote.. Se esperarmos pelo breve momento antes do anoitecer, também escutaremos o ritmado coaxar daquelas criaturinhas de tom esverdeado-marrom que chamamos de pererecas, sapos ou cantores da noite.
Assim, no contato com a natureza encontrei a vida em suas múltiplas formas, encontrei a beleza, música e harmonia. Reencontrei minha sensibilidade adormecida, essa dádiva que recebemos desde o nascer e que não devemos perder ou desperdiçar expondo-nos aos ruídos e sons violentos por vezes travestidos de música, que apenas nos atordoam e roubam o que temos de mais precioso que é a capacidade de nos sentirmos vivos, vibrando com o simples e o belo das pequenas coisas.
Flora Campos, Agreste pernambucano.
segunda-feira, 9 de abril de 2012
Carmen McRae
Carmen McRae, uma das maiores cantoras de jazz de todos os tempos, completaria 92 anos ontem. Carol Sloane, também ela uma grande cantora de jazz — aliás, dedicou-lhe um excelente álbum —, escreve aqui sobre a primeira vez que viu McRae ao vivo.
domingo, 8 de abril de 2012
Dois poemas de Hilda Hilst
Ávidos de ter, homens e mulheres caminham pelas ruas.
As amigas sonâmbulas, invadidas de um novo a mais querer,
Se debruçam banais, sobre as vitrines curvas.
Uma pergunta brusca, enquanto tu caminhas pelas ruas.
Te pergunto: E a entranha?
De ti mesma, de um poder que te foi dado
Alguma coisa clara se fez? Ou porque tudo se perdeu
É que procuras nas vitrines curvas, tu mesma,
Possuída de sonho, tu mesma infinita, maga,
Tua aventura de ser, tão esquecida?
Por que não tentas esse poço de dentro
O incomensurável, um passeio veemente pela vida?
Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada
De ter teu rosto verdadeiro, desejarias nada.
(Júbilo Memória Noviciado da Paixão(1974) - Poemas aos Homens do nosso Tempo - XIII)
* * *
Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.
Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto
Não cabe no meu canto.
(Júbilo Memória Noviciado da Paixão(1974) - Poemas aos Homens do nosso Tempo - XVI)
(Poesia: 1959 - 1979 - São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.)
As amigas sonâmbulas, invadidas de um novo a mais querer,
Se debruçam banais, sobre as vitrines curvas.
Uma pergunta brusca, enquanto tu caminhas pelas ruas.
Te pergunto: E a entranha?
De ti mesma, de um poder que te foi dado
Alguma coisa clara se fez? Ou porque tudo se perdeu
É que procuras nas vitrines curvas, tu mesma,
Possuída de sonho, tu mesma infinita, maga,
Tua aventura de ser, tão esquecida?
Por que não tentas esse poço de dentro
O incomensurável, um passeio veemente pela vida?
Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada
De ter teu rosto verdadeiro, desejarias nada.
(Júbilo Memória Noviciado da Paixão(1974) - Poemas aos Homens do nosso Tempo - XIII)
* * *
Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.
Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto
Não cabe no meu canto.
(Júbilo Memória Noviciado da Paixão(1974) - Poemas aos Homens do nosso Tempo - XVI)
(Poesia: 1959 - 1979 - São Paulo: Quíron; [Brasília]: INL, 1980.)
sábado, 7 de abril de 2012
ACRÍLICO
Ninguém tocará teu rosto
por detrás da máscara de
acrílico [onde há fumaça,
há fogo].
E o coração, muitas vezes,
parece ser órgão cansado e
estúpido. Clange e se arrasta
e plange, como carro de boi.
E ainda que não te possa tocar
a face, posso ouvir [e devo dizer
que ouço] esse roçar de carroça
em chão vermelho e pedregoso.
Olhe pra cima e respire
fundo: Aquilo é o Sol.
Marcelo Novaes
O homem imaginário
Nicanor Parra
O homem imaginário
vive em uma mansão imaginária
rodeada de árvores imaginárias
às margens de um rio imaginário
Dos muros que são imaginários
pendem antigos quadros imaginários
irreparáveis fendas imaginárias
que representam feitos imaginários
ocorridos em mundos imaginários
em lugares e tempos imaginários
Todas as tardes tardes imaginárias
sobe as escadas imaginárias
e se debruça na sacada imaginária
a contemplar a paisagem imaginária
que consiste em um vale imaginário
circundado de morros imaginários
Sombras imaginárias
vêm pelo caminho imaginário
entonando canções imaginárias
ao morrer do sol imaginário
E nas noites de lua imaginária
sonha com a mulher imaginária
que o brindou com seu amor imaginário
volta a sentir essa mesma dor
esse mesmo prazer imaginário
e volta a palpitar
o coração do homem imaginário
vive em uma mansão imaginária
rodeada de árvores imaginárias
às margens de um rio imaginário
Dos muros que são imaginários
pendem antigos quadros imaginários
irreparáveis fendas imaginárias
que representam feitos imaginários
ocorridos em mundos imaginários
em lugares e tempos imaginários
Todas as tardes tardes imaginárias
sobe as escadas imaginárias
e se debruça na sacada imaginária
a contemplar a paisagem imaginária
que consiste em um vale imaginário
circundado de morros imaginários
Sombras imaginárias
vêm pelo caminho imaginário
entonando canções imaginárias
ao morrer do sol imaginário
E nas noites de lua imaginária
sonha com a mulher imaginária
que o brindou com seu amor imaginário
volta a sentir essa mesma dor
esse mesmo prazer imaginário
e volta a palpitar
o coração do homem imaginário
Nicanor Parra, Chile, 1914-
sexta-feira, 6 de abril de 2012
Auto dos Danados
Não são só os ratos, aliás, que moram connosco no sótão. Possuímos um jardim zoológico completo de formigas, melgas, traças, centopeias, aranhas, grilos, carunchos, que presumo alimentarem-se da mesma falta de comida do que nós, sem contar as borboletas que se esmagam contra as lâmpadas, no verão, e se reduzem de imediato a um pozinho escuro de verniz. E há os pombos. E as rolas. E os barcos, como lesmas, no Tejo. E os vizinhos em camisola interior, incapazes de voar, crucificados nos craveiros das varandas. E tu e eu, cada vez mais transparentes e magros, a prepararmos o pequeno almoço de meio grama de heroína da injecção da manhã.
Antonio Lobo Antunes, Lisboa (1942), autor, entre outros, de "Memória de Elefante", "Os Cus de Judas", "Manual dos Inquisidores".
Antonio Lobo Antunes, Lisboa (1942), autor, entre outros, de "Memória de Elefante", "Os Cus de Judas", "Manual dos Inquisidores".
La Poesia terminó conmigo
Yo no digo que ponga fin a nada
no me hago ilusiones al respecto
yo quería seguir poetizando
pero se terminó la inspiración.
La poesía se ha portado bien
yo me he portado horriblemente mal.
Qué gano con decir
yo me he portado bien
la poesía se ha portado mal
cuando saben que yo soy el culpable.
¡Está bien que me pase por imbécil!
La poesía se ha portado bien
yo me he portado horriblemente mal
la poesía terminó conmigo.
Nicanor Parra, nasceu em San Fabian de Alico(Chile), em 1914. Recebeu em 2011 o Prêmio Cervantes pelo conjunto de sua obra. É considerado o criador do antipoema.
quinta-feira, 5 de abril de 2012
quarta-feira, 4 de abril de 2012
Manoel de Barros
MANOEL DE BARROS!
Gramática Expositiva do Chão
A nossa garça
Penso que tem nostalgia de mar essas garças pantaneiras. São viúvas de Xaraiés? Alguma coisa em azul e profundidade lhes foi arrancada. Há uma sombra de dor em seus voos. Assim, quando vão de regresso aos seus ninhos, enchem de entardecer os campos e os homens.
Sobre a dor dessa ave há uma outra versão que eu sei. É a de não ser ela uma ave canora. Pois que só grasna - como quem rasga uma palavra.
De cantos, portanto não é que se faz a beleza desses pássaros. Mas de cores e movimentos. Lembram Modigliani. Produzem no céu iluminuras. E propõem esculturas no ar.
A Elegância e o Branco devem muito às garças.
Chegam de onde a beleza nasceu?
Nos seus olhos nublados eu vejo a flora dos corixis. Insetos de camalotes florejam de suas rêmiges. E andam pregadas em suas carnes, larvas de sapos.
Aqui seu voo adquire raízes de brejo. Sua arte de ver caracóis nos escuros da lama é um dom de brancura;
À força de brancuras a garça se escora em versos com lodo?
(Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garças. Insinuando contrastes (ou conciliações?) entre o puro e o impuro, etc etc...Não estarei impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus os livre!)
AQUELES NAVIOS PARAGUAIOS
Eu sou contra a retirada daqueles dois navios paraguaios que resistem em nossa orla há já uns quinze anos. Parecem decadentes, como se diz de tudo o que seja velho. Parecem ser desbotados, com suas torres de tintas descascadas, enferrujadas, carcomidas pelo tempo. Dizem que não somos nós, mas estes barcos que poluem o porto da cidade, embora eu não acredite no verdadeiro impacto que isso possa causar diante de tantas outras mazelas ao nosso redor. Suas torres, vistas daqui do meio da rua, ou por quem chega à cidade pela rodoviária, mais ou menos elevadas segundo a maré, ainda nos permitem lembrar que por trás daquele muro horrendo da Avenida Mauá existe um rio chamado Guaíba. Um rio que mesmo crianças de rua do Centro Histórico mal conhecem. Um rio que mesmo adultos já não vêem. Um rio que muitos já esqueceram. Querem vender os navios como sucata. Querem que se os talhem de vez com o maçarico, querem negociar as suas partes. Para que o aço ressurja um dia, quem sabe nos corpos de outras naves modernas, mas que serão apenas naves modernas, sem passado, sem história, sem alegrias e sem dores. Não se fazem mais navios como aqueles paraguaios, em nada falsos. São de uma natureza poética tão sentida como a da época em foram erguidos. São tão nobres que carregam nomes de brigadeiros. Não, não se os destruam. Navios são como charutos. Nunca se os apagam de um golpe. Ao invés, se os deixam morrer por si, depositados gentilmente em cinzeiros. Eles precisam fenecer com a dignidade de um velho guerreiro que por toda a vida serviu ao seu senhor. Deixem aqueles navios ali para que afundem, pouco a pouco, um milímetro a cada dia. E ao final, quando suas torres não mais se sustentarem sobre os cascos corroídos, que elas adernem à nossa vista acostumada só a ver as coisas cotidianas, habituadas a calcular os dividendos da sucata, nossas mentes incapacitadas de enxergar poesia no estertor dos ferros. Deixem aqueles navios ali, que eles ainda têm muito a nos dizer sobre a decadência que nós somos.
terça-feira, 3 de abril de 2012
Tempo de Ronda
Água na cacimba.
Caminhada longa,
até Loanda. [Um
tempo de ronda. Uma
oração sacra. Um orador
de toga].
[O que fazer depois de certa
Hora? Como transformar espera
em menor demora?].
Alguém se deita à sombra de
alguém. Não há sequer árvore
frondosa. [E o milho amarelo
foi levado pelo galo, à tarde.
Tem o vermelho. Mais
selvagem].
As horas [impávidas,
Caminhada longa,
até Loanda. [Um
tempo de ronda. Uma
oração sacra. Um orador
de toga].
[O que fazer depois de certa
Hora? Como transformar espera
em menor demora?].
Alguém se deita à sombra de
alguém. Não há sequer árvore
frondosa. [E o milho amarelo
foi levado pelo galo, à tarde.
Tem o vermelho. Mais
selvagem].
As horas [impávidas,
dormentes] sobrevivem.
Sós.
Água na cacimba.
Sede na boca.
A caminhada é longa,
de Teotihuacan até
Loanda.
[Um tempo de ronda. Uma
Oração sacra. Um orador de
Toga].
(Marcelo Novaes)
Água na cacimba.
Sede na boca.
A caminhada é longa,
de Teotihuacan até
Loanda.
[Um tempo de ronda. Uma
Oração sacra. Um orador de
Toga].
(Marcelo Novaes)
"Com uma pequena ajuda dos meus amigos"
Herculano Neto está participando de um concurso de composição promovido pelo músico
Leoni. O vencedor terá seu trabalho gravado por ele e será lançado como
single gratuito no seu site e à venda no iTunes, além de ser enviado
para as rádios de todo o país. Para ajudar, basta seguir as instruções abaixo:
PASSO A PASSO!
1 - Entre no site http://trampo.com.br/leoni/wp-login.php?action=register
2 - Crie um nome de usuário e digite seu e-mail (evite Bol ou Hotmail)
Será enviada uma senha para o e-mail digitado.
3 - Entre no e-mail e copie a senha que foi enviada (pode estar em spam).
4 - Com a senha, retorne para http://trampo.com.br/leoni/wp-login.php .
Logado, vá até http://concurso.leoni.com.br/ (não é necessário preencher o perfil)
5 - Abaixo dos vídeos concorrentes, quase no fim da página, localize o nome dos autores (Herculano Neto/ Josane Peer)
6 - Clique na bolinha ao lado dos nomes (Herculano Neto/ Josane Peer)
7 - Confirme o voto no quadradinho no parte inferior da página.
8 - Infelizmente, só é aceito um voto por computador, portanto, para garantir outros votos, o melhor caminho é divulgar.
8 - Depois é só torcer.
segunda-feira, 2 de abril de 2012
Desenredo (Trechos)
- Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.
Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de seu secreto, claro, coberto de sete capas.
Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinho de papel.
[..................................................................................................................................]
Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retornaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.
E pôs-se a fábula em ata.
João Guimarães Rosa, em Tutameia.
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