sábado, 29 de março de 2014

POSSE





Nos compêndios escolares não se falava da pequena ilha
solitária e perdida nos mares do Sul.
Não passavam por lá os barcos dos brancos
e o povo seguia a sua própria lei
que no entanto não estava escrita em livro algum.
Homens e mulheres viviam nus e amavam-se sem complicações
e comiam peixes que pescavam em canoas feitas com troncos de árvores
e carne de animais caçados com setas certeiras.
 
Atletas e guerreiros dançavam ao som de búzios e tambores
e as bailadeiras ondeavam contorcidos ritmos lentos
na toada triste de instrumentos de uma só corda.
E tinham seus deuses, seus santos, seus sacerdotes, seus feiticeiros,
e moravam em cubatas cobertas com palmas das palmeiras.
 
Mas do outro lado da terra
um dia
senhores de cara grave assentaram-se à volta de uma mesa com mapas em frente,
 
falando de guerras,
de bases para aviões,
de pontos estratégicos
.
Então veio à baila a ilha solitária perdida nos mares do Sul...
Semanas depois um barco de ferro chegou e fundeou
nas águas tranquilas da baía...
E um escaler veio para terra com homens loiros vestidos de branco,
trazendo, entre outras coisas,
uma bandeira para a primeira afirmação imperial,
um chicote para o primeiro castigo,
um barril de pólvora para o primeiro massacre
e um outro de álcool para o primeiro comércio!
 
Jorge Barbosa (Cabo Verde)
 

sábado, 22 de março de 2014

Vibrações

J.R.Duran
 


 

Vibrar, viver.
 Vibra o abismo etéreo à música das esferas;
 vibra a convulsão do verme,
 no segredo subterrâneo dos túmulos.
 Vive a luz, vive o perfume,
 vive o som, vive a putrefação.
 Vivem à semelhança os ânimos.
 A harpa do sentimento canta no peito,
 ora o entusiasmo, um hino,
 ora o adágio oscilante da cisma.
 A cada nota, uma cor,
 tal qual nas vibrações da luz.
O conjunto é a sinfonia das paixões.
 Eleva-se a gradação cromática
 até à suprema intensidade rutilante;
 baixa à profunda e escura vibração das elegias.
 Sonoridade, colorido: eis o sentimento.
 Daí o simbolismo popular das cores.
 
  Raul Pompéia,  Angra dos Reis (RJ) 1863-1895 .

quarta-feira, 12 de março de 2014

Sino rachado



Lisboa, 27 de outubro de 2009
Olá!
Como nos grandes restaurantes, as cozinhas nas caves, a sala dos banquetes instalada no andar por cima – não era assim? Que honra trabalhar na produção do espectáculo de grandes banquetes!
Estou a referir-me ao texto que li em seu blog, à sua qualidade de revisora, agora arrependida.
Quanto à queda na qualidade de ghost-writer... que mal fez você a Deus? Isso não é trabalho em caves: é trabalho em canos de esgoto!
Mas foi por pouco tempo, diz você.
Conquistou um lugar ao sol?
Está respirando ar puro agora?
Atenciosamente,
Bernardo Sinval de Santantão