sexta-feira, 2 de abril de 2021

 

É preciso olhar.

Para que sua dor chegue até mim.

Toda a história nos olhos da menina que cresceu antes da hora, no meio dos horrores de uma guerra.

Toda poesia precisa dobrar os versos até essa dor.

Ou a poesia que se cale.



terça-feira, 7 de novembro de 2017

JUDITE O FILME





Todo jardim é o início dos voos de uma lagarta.

Mesmo sem asas, eu aprendi a voar sonhando com as pipas
correndo no quintal da casa 53 de um bairro distante daquela cidade pequena do
interior.

Para voar é preciso equilibrar o ar – respira e vai sem medo
das tempestades que com certeza virão.
Sempre preferi os dias chuvosos, cinzentos. O azul intenso do
céu me assustava e eu corria para a barra da saia de minha avó enquanto me
inebriava com o cheiro dos doces que ela fazia e me acalmava impedindo que eu
chorasse.

Eu nunca consegui chorar, embora tenha um nó na garganta
desde que nasci.

Dizem que não podemos fugir do nosso destino. Talvez, o meu
seja esse nó que não desata, essa asa que não cresce, essa lágrima que não
desce.

Mas, eu queria ter muitos destinos e no meio de tanto querer
fui inventando de inventar um monte de invencionices e a maior delas foi que
inventei um Jardim só para mim onde eu pudesse compartilhar olhares, afetos,
amores.



Um Jardim que se transformasse num mundo e me fizesse voar, mesmo
sem sair daquele quintal.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

MANIFESTO PARA UM CORPO EM ESTADO DE NUDEZ





MANIFESTO PARA UM CORPO EM ESTADO DE
NUDEZ

Nós, da Escola de
Dança da Universidade Federal da Bahia nos declaramos, declamamos, dançamos em
comum à polifonia de atuações, em crítica plena e sistemática às subjetividades,
que se pretendem acima das leis de nosso país.
Características
subjetivas devem se manifestar a todo e qualquer tempo! Sem, todavia, tolher,
execrar, censurar, violar... o que ou quem quer que seja.
A Arte não está
desvinculada da sociedade da qual faz parte e tem o livre direito de expressão,
como toda e qualquer manifestação.
Não podemos aceitar
falsos moralismos.
Não permitamos que
este momento cruel, pleno de repressões subjetivas, nos tornem culpados de algo
que a Arte não é.
Não admitamos as fake news as pós-verdades!
Queremos especificar
nosso lugar de fala e estar em comum ao artista da dança Wagner Miranda
Schwartz.
Afirmamos o seu
estado de nudez como uma única possibilidade para o trabalho apresentado.
Uma nudez como um
figurino.
Uma qualquer
cobertura seria uma hipocrisia!
Não deixemos que uma
pulsão de vida seja tornada uma pulsão de morte!
Não deixemos que o
corpo seja visto como uma arma de violação!
Ataque à rejeição do
corpo!
Amamos o corpo.
Nudez como
conhecimento. É crua, bruta.
Qualquer sexo para a
nudez é possível.
Sexo sem
sexualização.
Uma nudez que cabe.
Uma nudez sem idade,
por isso cabe criança, cabe adolescente, cabe jovem, cabe adulto, cabe idoso.
Uma nudez de relação
entre gerações.
Uma nudez em estado
de ludicidade!
Nudez
como potência.


Nudez como estado no
mundo, como animal humano, como bicho, como La Bête.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

A cidade amanhece sempre igual

Um sol ou nuvens
ruídos intrusos
na marcha horizontal
dos horários e agendas.

Aqui e ali um impropério
um tropeço na calçada mal feita
um aceno
um encontro inesperado.

A cidade promete o mesmo
roteiro de um dia normal
céu nublado ou chuva forte
um frio na tarde cômoda.

Os que passam por ela
(os mesmos de ontem)
tem perguntas novas
mas talvez não queiram respostas.

A cidade é um deserto e um abrigo
uma cápsula de comprimido
um copo cheio e também vazio
alto da montanha e planalto a perder de vista
roda viva e da fortuna
e num jogo de dados
(todo dia outro alvo)
a cidade mata,
a cidade abençoa
a cidade berra
silencia, violenta, cobra caro
e faz milagres.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Volta na quadra

Na volta na quadra com meus quadrúpedes, converso com um operário da obra que começou aqui ao lado. Ele me diz que vão derrubar de vez o sobrado antigo. Pergunto sobre o número de andares do prédio. Três, talvez façam um quarto. Abro o sorrisão. O horizonte seguirá na minha janela. Sigo em frente, paro na casa da Tita, a chamo, e ela não vem. Nem sinal de novo. Faz dias que ela não vem... Ligo o botão do otimismo e digo para Bono e Fifinho que ela deve ter saído de férias. Sigo mais um pouco e vem subindo a lomba duas moças de salto agulha alto, tão alto, mas tão alto que chega a dar vertigem. Paro para observar. A única vez em que tentei calçar algo parecido, balancei para frente, para trás e quase gritei "madeiraaaa". Elas não perdem o rebolado. Conversando como se nem tivessem pés, param em frente a um carro, a motorista abre a porta, entra e senta. Eu espicho o pescoço. Ela vai trocar os sapatos por um baixinho. Vai trocar. Tem de trocar. Que nada! O carro faz ram rom ram e eu fico, na calçada, com a minha bipedice, realmente, abismada...

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

O CORVO

Vivia eu
Dia solitário
Dia triste
Cabeça vazia
Pensamento oco
Quando me chegou
Um corvo
(Não sei se lúgubre
Não sei se aziago
Não sei se ogro)
A pedir-me pouso

Explicou:
Vinha de um tempo
Já prescrito
Fora despejado
De uma cripta
Da qual
Tinha documentação
Legalizada
(Firma reconhecida)
Compreendi
(Sei o que é burocracia)
Aquiesci
(Precisava
Mesmo
De companhia)
E lá se foi a ave
Agradecida
Buscar esposa
Buscar concubina

Instalaram-se
Os três
Na minha referida
Caixa craniana
Criaram descendência
(Eu criei dependência)
Ali viveram
(Melhor dizendo:
Ali vivemos)
Até o momento
Em que o espaço
Ficou parco:
Bateram asas
Bateram em retirada

Levando apêndice



domingo, 1 de novembro de 2015

Ficções das pequenas incertezas I



      É bem provável que ela diga daqui pra frente narro a vida sem você. Diga quase levemente, assim como quem não quer nada, parecendo menina, deixando as palavras derreterem-se pelo corpo inteiro, de cima abaixo, maculando o vestido, a pele, os pés. É bem provável que ela prenda os cabelos em um coque e ajeite a pilha de livros sobre o criado-mudo, colorida como as fotografias tiradas no mercado de flores, antes de abrir as portas do armário e ordenar a ele que feche as da rotina. Ele, a sua bagagem de retorno e de ida, o seu silêncio de afagos e a sua metade agora mordida. 

Postado por Helena Terra (Bípede falante)

domingo, 7 de junho de 2015

Mãe de gente

Junho é o mês em que conto os anos da morte da mãe. Este ano, dia 23, serão dezoito. No início, pensei que com o tempo o seu desaparecimento precoce se acomodaria em algum esconderijo da minha mente. 
Mas não dizer mais a palavra mãe escancarou a sua falta logo na primeira semana. Até então eu não tinha entendido o quanto essa palavra nos  ampara.
Nos domingos, invariavelmente, ela me ligava estivesse onde estivesse. Se não me encontrava em casa, deixava na secretária eletrônica sempre a mesma mensagem:
- Milha filha, sou eu, a mãe. Me telefona quando puder.
Guardei a fita cassete com a gravação. Está em uma gaveta do móvel que era do meu pai dentro de uma caixinha de madeira. Dá para se perceber que sou sentimental. No entanto, não tenho como ouvi-la. O gravador compatível que eu tinha, dos tempos ainda de faculdade, se perdeu. Talvez tenha ficado na casa antiga.
Muitas coisas se perderam.
De muitas coisas me perdi. 
De algumas outras fui perdida.
A vida é também uma dinâmica de subtrações embora a gente passe o tempo acumulando de tudo um pouco, inclusive novos laços e alegrias.
Três anos depois que a mãe morreu, tornei-me uma. 
Gordo, grande, saudável nasceu o meu filho. E a cada mãe, mamãe, que ele disse e diz sinto falta da minha.
A minha mãe, além de cuidar da família e da casa, lecionava, pintava e administrava um pomar de maçãs.  Não se encaixava no modelo  materno primário de que ser mãe é viver só de dar e receber amor. Não se encaixava em vários modelos femininos propagados por essa nossa cultura despudoradamente autoritária e machista. 
Entretanto, se encaixava no que entendo por ser, de verdade, a pessoa responsável pela educação de uma outra. Educação afetiva, social, política, pessoal. Educação muito além dos manuais de etiqueta e dos bancos escolares.
Assim como eu, minha mãe adorava cães. 
Assim como eu, não se sentia mãe de nenhum.
Me perdoem as mães de gatos e cachorros. A ideia não é diminuí-las. Mas ser mãe de gente é outra história. Exige trabalho árduo e constante. 
Mãe de gente não sai e bate a porta e diz até a noite.
Mãe de gente está sempre de olho na agenda e nas emoções, suas e de sua cria.
Mãe de gente ensina sem parar, aprende sem parar.
Mãe de gente testemunha acertos e erros, testemunha frustrações,  evoluções, participa. Mãe de gente se modifica, cresce, faz aniversário duas vezes por ano, três, quatro, quantas forem as crianças.
Mãe de gente passa noites em claro porque o filho está doente, porque o filho está lépido e faceiro em uma festa, porque está viajando com a escola, porque foi mal na prova, porque foi bem na prova, porque se acha bonito, feio, bonito, inteligente, tonto, inteligente, porque comeu demais, de menos, porque levou um fora ou deu.
Mãe de gente se envolve mais que mãe de bichinhos. 
E mãe de gente renuncia ao que for.
Mãe de gente, se precisar, nem precisa pedirem, dá logo a vida. 
Mãe de gente morre com a morte de um filho.
Mãe de gente renasce para honrar a memória desse filho.
Mãe de gente se torna mãe de muitas gentes.
Da própria mãe quando chega a velhice.
De si própria e dos irmãos quando não há mais uma mãe para chamar.
Mãe de gente conta os anos pra trás e pra frente, pra trás e pra frente, eternamente. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Cesta do piquenique

Amizade é tesouro raro. Em meio a muitos tesouros diferentes, cada um encontra um jeito de ser raridade. Como me faz bem pensar nos amigos que encontrei/encontro pela vida! Como me faz bem saber que continuo aberto e sentindo prazer em encontrá-los. Como sou grato por cada um que tenho, por cada um que tive. Amizade, amor... para mim não passam. Transformamos a maneira de lidar com o outro, a vida vai trazendo diferentes abordagens para o mesmo tema. Uns se mantém cada vez mais próximos e sabem o que temos comido, a festa que temos ido, a doença que atrapalhou a reunião, o riso com a besteira da televisão ou o choro com o resultado de exames. Alguns não sabem de detalhes, mas entendem o conjunto da obra e se fazem presentes em pequeninas-grandes coisas. Outros não fazem mais questão de nada mesmo, mas não deixam de deixarem rastros. Olho com cuidado para cada um que me toca, afeta... sinto muito pelas vezes que não pude corresponder ao que desejaram de mim, mas busco sempre ser inteiro, verdadeiro, até mesmo nas pequenas mentiras, aquelas que se forem verdades o outro não entende, como por exemplo não querer falar ao telefone e mandar dizer que está dormindo. Eu não me importo quando me dizem que não querem falar, mas tenho amigos que se zangam, então prefiro mentir para não zangá-los. Depois, quando estou de bom humor e se ele continua querendo falar, gargalhamos juntos. Gosto quando não se ofendem com minha necessidade de ficar sozinho, quando dou aquela morrida necessária. Também compreendo, não sem tristeza, que há os que não voltam mais, os que foram. Aqueles em que se rompe a tênue linha que tecemos juntos até um certo tempo e depois se parte. Aí, chegam momentos de coração partido, doído e lembranças. Aí, chegam os amigos que continuam e te enchem de alegria porque basta tê-los para isso acontecer.


Estou em tempos de saber o que sobrou na cesta do piquenique.

foto e texto Edu O.