segunda-feira, 7 de julho de 2014

Tisanas





75.

Era uma vez uma idade. Sentada à porta de casa apascentava os seus mortos. Quando eles se aproximavam demasiado separava-os com uma varinha. Sim porque o peso dos mortos para onde vai perguntava a idade. E nesses momentos envelhecia. Recolhia a casa e os mortos deitavam-se debaixo das árvores. Quando os ramos envelheciam os mortos perguntavam a idade para onde irá. E erguiam-se de sob as árvores.

80.

Era uma vez uma história tão impressionante que quando alguém a lia o livro começava a transpirar pelas folhas. Se o leitor fosse muito bom o livro soltava mesmo algumas pequeninas gotas redondas de sangue.


137.


Sentado à porta de casa um filólogo meditava a evolução das palavras. Em frente havia um precipício. De tantos em tantos anos caía lá uma palavra. Então o filólogo retirava a rede e colhia a palavra caída. não sei se isso se devia à extrema dificuldade da recolha se á extrema solidão do seu trabalho.


Ana Hatherly, em  A idade da escrita e outros poemas

sábado, 5 de julho de 2014

Em memória de Ivan Junqueira (1934-2014)




 
A mão que escreve



A mão que escreve é aquela
que não pôde, inepta,
agarrar o que lhe era
devido nesta gleba:
glória, insígnias, troféus
e algo enfim que soubesse
àquilo a que, incrédulos,
chamamos vida eterna.

A mão que escreve é aquela
cujas linhas, babélicas,
descumpriram o périplo
que lhes previa a esfera
de um trismegístico Hermes,
e que, por dolo e inércia,
deixou rolar a pérola
que arrancara do pélago.

A mão que escreve é aquela
que foi, além de réproba
e amiúde analfabeta,
muitas vezes canhestra:
enfiou por ínvias vielas,
urdiu frases sem nexo,
bateu-se em tolos duelos
e excedeu-se, sem rédeas.

A mão que escreve é aquela
que compôs alguns versos,
odes, canções de gesta
e elegias sem metro,
às quais ninguém deu crédito
nem ouvidos.
 Aquela que ergueu um brinde
 aos féretros
de uma insepulta Grécia.


Antes que o sol se ponha

   
Antes que o sol se ponha e seja tarde,
e o azul crepuscular me deite a garra,
e eu, nu, retorne à terra sem fanfarra
ou mortalha que o corpo me resguarde;
antes que murche a pétala na jarra,
e eu cale, para sempre, sem alarde,
e tudo o que me coube, por covarde,
não mais recorde a relva que se agarra
às últimas raízes da existência;
antes que eu cerre os olhos e adormeça,
e em minhas próprias células esqueça
as chamas que me arderam na consciência;
antes que a luz regresse e que amanheça,
e eu a mim mesmo já não me conheça.



Epitáfio


    De tua história, nada;
ou tudo, se quiseres:
entre uma e outra data,
a fábula de seres
nunca o tangível ,mas
o pássaro, o maralto
(o passo, não: o salto
em vão, fora do espaço),
o amor, vale dizer:
sua forma álgida e rara,
avessa à coisa amada
— e, súbito, colher
a morte, flor cediça,
dentro da vida.

quarta-feira, 2 de julho de 2014